Beirut, “Landslide”, in https://www.youtube.com/watch?v=GCVB5zjwdzE
Dantes escrevia-se em papel. Dantes: quando não havia computadores e o processamento de texto autorizou a trapaça na escrita. Como já então acontecia, não eram em versão definitiva, os textos. Era preciso ler e reler e voltar a mais outra leitura. De cada vez que os olhos se deitavam no texto, vertiam-se anotações à margem, correções, palavras substituídas, outras omitidas, outras acrescentadas. Palavras em sobreposição de palavras, a mancha do texto tornando-se uma cornucópia selada a cores várias, uma para as mudanças, diferente da tinta responsável pelo texto original.
Dantes, era preciso passar o texto a limpo depois de tantas correções e anotações à margem e reconstruções de frases, às vezes, de parágrafos inteiros. Por maior que fosse a atenção ao passá-los a limpo, uma distração podia enfraquecer a tarefa. Era preciso voltar à folha em branco e, meticulosamente, transcrever o texto depois de depurado na folha que recebera a versão original. Os dilemas eram prolixos. Mesmo quando já atestara uma versão final do texto, ao passar a limpo soerguia-se uma frase, um verbo, um substantivo a carecer de modificação. Eram correções que se sobrepunham às correções; correções à, afinal, não definitiva versão. O texto demorava a encontrar a forma definitiva.
Às tantas, o pensamento debatia-se num intrínseco labirinto, não se contentando com nenhuma versão do texto. E o texto suspendia-se na indefinição, não conseguindo amadurecer na sua definitividade, hipotecado pela impureza. Diante de um mar de hesitações, tinha de determinar o momento para selar a versão definitiva. Os olhos juravam a si mesmos que não voltariam a repousar no texto, pois sabiam que se o fizessem tropeçavam na insatisfação com uma fórmula, um verbo a destempo, um substantivo sem sede própria, um adjetivo dispensável (como, normalmente, são dispensáveis muitos adjetivos).
Só que a folha que a certa altura mostrava o texto imaculado, sem anotações à margem, sem rasuras, pequenas ou extensas, era um desafio. Sabia da propensão para regressar ao texto, para depois decair nas irrecusáveis modificações. O texto nunca mais ganhava forma definitiva. Muitos acabaram por ficar inacabados: assim os considerava, só para resistir ao apelo de mais uma revisão que trazia, era uma certeza, a exigível insatisfação que era pretexto para mudanças. Agora não é muito diferente: a escrita tem a sua convolação, mas as rasuras não ganham forma na folha que a acolhe.
Perdi o rasto a todos esses textos que ficaram em forma de caligrafia.
Sem comentários:
Enviar um comentário