11.1.19

Os arrumadores de almas


In the Nursery, “To the Faithfull”, in https://www.youtube.com/watch?v=z7I2Vy3T_Bo
Os cotovelos tinham por base a mesa onde repousava a singela jarra que abrigava um punhado de flores silvestres. A água a caminho de se tornar baça. Uma ligeira névoa de fumo circulava a meio da sala, mas não dava conta do fumador. Uma mulher com rosto cansado entrou na sala, as olheiras acentuadas afundando o olhar e, ao mesmo tempo, sublinhando a melancolia. Pediu um café e esperou em pé. 
Lá fora, começou a chover. Um aguaceiro brusco, inopinado. Acompanhado por vento que, de um momento para o outro, se tornou vendaval. As pessoas fugiam, procurando refúgio. Um guarda-chuva voou, a vítima mais recente da intempérie sem pré-aviso. A mulher terminou o café e desfez os planos: tendo ficado em pé, à espera do café, talvez estivesse com pressa de ir à sua vida; a tempestade súbita mudou os planos. Aguardava junto à saída, com alguma impaciência, que a tempestade desse tréguas.
As flores silvestres, como que animadas pela feérica tempestade, saíram da murcha condição. Dir-se-ia que também queriam espreitar, pelo pescoço da jarra, o ribombar do vento que soprava em violentas rajadas, disparando bátegas de chuva. A paragem do autocarro do outro lado da rua estava apinhada. As pessoas procuraram refúgio para não serem atropeladas pelo temporal. Três dessas pessoas atravessaram a rua e entraram no café – era mais confortável o abrigo do café e, vistas as coisas, a paragem estava sobrelotada, as pessoas acotovelando-se umas nas outras para não serem inundadas pela desbragada procela que se pôs. 
Outra vez sem pré-aviso, a chuva e o vento suspenderam a atividade. Havia algum lixo pelo chão, talvez arrancado aos pertences de um caixote de lixo que ainda não fora recolhido. Uma nesga de luz irrompeu, caiando a água vertida sobre as ruas, um rio acetinado que atapetava o asfalto. Parecia a retaliação do sol contra as nuvens fortemente acasteladas que legitimaram a recente tormenta. Num braço de ferro entre sol e nuvens, que se digladiam continuamente pela usurpação do céu. A mulher ensonada saiu do café, já não podia esperar mais na sua impaciência visível. 
As três pessoas que encontraram refúgio, voluntariamente exiliadas da paragem do autocarro de onde fugiram como fogem dos lugares amontoados, sentaram-se em mesas separadas. O homem septuagenário tirou um jornal de dentro da gabardina encharcada. O jornal salvou-se (a gabardine era impermeável). Chamou o empregado de mesa, que continuava a exibir o mau-humor inato apesar das sucessivas chamadas de atenção do proprietário do estabelecimento, que já perdeu clientes à conta da impertinência do rapaz. O idoso pediu, friamente, um café e um pastel de nata, sem dirigir o olhar para o rapaz. Este vociferou, em surdina, “ao menos podia usar se faz favor”. A semi-surdez do cliente foi a sorte do proprietário do café.
Um mendigo entrou no estabelecimento. Dirigiu-se ao balcão. Pela rotina dos gestos, parece habitual. A senhora que tira os cafés e despacha o restante expediente entregou-lhe um saco com várias embalagens. O homem acenou, em tom de agradecimento. O idoso que lia o jornal desviou o olhar e chamou o mendigo, depondo na mão um punhado de moedas (as que tinha na algibeira). O mendigo repetiu o gesto de agradecimento, balbuciando uma semi-palavra que denunciou a mudez. 
Olhou para a rua, tirando uma bissetriz através da jarra onde as flores silvestres novamente afocinharam em seu decaimento. Os excessos da breve tempestade estavam corrigidos. A água tinha sido enxugada. A paragem do autocarro estava vazia. E já não passavam autocarros há vinte e três minutos.

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