Mão Morta, “Tiago Capitão”, in https://www.youtube.com/watch?v=q7t7mXbpG5I
Nasceu num berço de rebeldia: o pai, vigarista habituado a frequentar os salões da alta sociedade, homem dotado de um charme singular, enriqueceu à custa de golpes tão cirurgicamente praticados que eram à prova de condenação em tribunal; a mãe, cartomante nas horas vagas do trabalho na repartição de finanças, granjeou fama farta pelas profecias que acabavam por coincidir, com uma impressionante dose de sorte, com os acontecimentos.
Medrou nesta rebeldia desde novo. Na escola, foi o terror dos professores. Era discretamente malcomportado, compensando com inteligência, gosto pela atualidade e pela cultura que ultrapassava as demandas dos professores. Tinha um prazer irreprimível em dirigir interrogações sensíveis ao professorado. Só pelo deleite de os ver atrapalhados, incomodados com o topete que, todavia, era ao mesmo tempo sinal de inteligência acima de média.
Ciente dos seus dotes e embebido numa rebeldia que era maior do que o seu tamanho, um dia escreveu, numa daquelas composições estéreis pedidas pela professora de português, que queria ser pirata quando atingisse a idade adulta. A adolescência ensinou que o trabalho é um aborrecimento – e desde que lera Agostinho da Silva a argumentar que a obrigação do trabalho que impende sobre as pessoas é uma violência, a negação do estatuto da humanidade, mais se convenceu que tinha de colocar a inteligência ao seu serviço para ser pirata a tempo inteiro e não ser coagido a encontrar biscates nos tempos livres.
A lábia estava nos genes. Assim como assim, nas veias circulava sangue igual ao do pai. Em cima destes pergaminhos estava um encanto que parecia hipnotizar as donzelas que se ufanavam de pertencer à alta sociedade. Era o caldo de que precisava o pirata. Elas diziam, perdidas, não de amores (que esses eram artificialmente cerzidos para um proto aristocrata com quem as conveniências e as convenções mandavam contrair matrimónio), mas de desejo. Chamavam-lhe o pirata doce, sintomaticamente. Diziam, quando se encontravam em conversas secretas nas melhores vernissages, que tinha uma pele doce – que tudo nele era doce, até quando ele lhes facultava os prazeres libidinosos de que os consortes eram incapazes.
Um dia, uma destas donzelas ficou ressentida com um não que ouvira do pirata doce. Queria a senhora que ele fosse seu amante em regime de exclusividade. Não o queria partilhado com as outras (“galdérias”, foi o libelo acusatório que, sem noção de si mesma, usou para as concorrentes). O pirata doce não queria deixar de continuar a espalhar a sua generosidade. A exigência de exclusividade não combinava com a generosidade de que se julgava tutor. A madame, vingativa (o que não quadrava com os pergaminhos da alta sociedade, sempre no afã de ensinar a superioridade moral), denunciou o pirata doce.
Quando se adivinhava que os maridos, agora conscientes vítimas de adultério, organizassem uma caçada ao pirata doce, o insólito aconteceu: eles pagavam a preço de ouro os conselhos que o pirata doce tinha para vender para se tornarem aquilo que, dentro dos lençóis, nunca tinham conseguido ser.
De uma assentada, todos ficaram a ganhar. Os proto aristocratas, que só lamentavam terem estado tanto tempo a definhar por causa da moral cristã que os castrou durante o tempo pretérito; e as donzelas da alta sociedade, que já não precisavam de procurar fora de casa o que dentro dela estivera ausente. E até o pirata doce tirou proveito do novo cenário: era principescamente pago pelos seus conselhos de alcova. A idade mudara-o: o materialismo suplantou o hedonismo dos prazeres carnais.
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