New Order, “Leave Me Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=U0uUvCpHDS0
Devo ser eu a absolver o espelho que me ajuíza. De que serve a condenação se o espelho se limita a exarar em ata a silhueta do corpo que trago?
Talvez seja ao contrário. É o espelho que não me envergonha. Não serve de disfarce para o corpo que sou. As formas que se tecem não merecem um refúgio nos contrafortes da ilusão. Outros há peritos no ardil: uns, encomendam um espelho que seja a imagem propositadamente distorcida do corpo que são, para melhor; outros, deixam-se encantar pelo fingimento do olhar, incapazes de ver o corpo que se recusam a admitir. Não interessam as meritórias sentenças dos outros (interessar-lhe-ão, aos próprios). Não interessa o desprezo das formas do corpo que não quadram com os cânones. Houve um tempo – e ficou imortalizado em obras de arte, selando o entendimento da época – em que os corpos eram robustos e ninguém os votava ao ostracismo pela ostentação de adiposidades. As modas são efémeras (ensinam o conhecimento do mundo e a história). Ninguém sabe se, de hoje para amanhã, a corpulência inestética deixará de pertencer ao exílio.
Pouco importa o que será a letra viva do porvir. E menos interessa que haja quem desdenhe do corpo que trago. É o meu corpo. Consegui derrotar os preconceitos que fermentavam por dentro de mim desde que passei a não dar ouvidos aos comentários depreciativos. Passei a confiar no espelho. No espelho que não me envergonha. No meu olhar. Que é, afinal, juiz supremo, sem direito a recurso para outras instâncias. Não quero saber dos perfecionistas, ou dos tutores da estética. Os corpos não se medem aos olhares dos outros. No que me diz respeito, mede-se através da bitola do espelho que entra pelo meu olhar. Não estou à espera de condescendência. Nem de parcimónia dos que se julgam suseranos do meu corpo. Eu sou o único suserano dele. Os outros, limitam-se a ser observadores exteriores, com a mesma importância que têm os forasteiros no governo de uma nação.
Tenho confiança neste espelho que não me envergonha. Orgulho no meu olhar. Não há mais camadas sopesadas no palco onde se terçam as coisas que importam. Não sei se o espelho é fidedigno. Não sei se o meu olhar está propositadamente mandingado. Enquanto trouxer este corpo comigo, não o renego. Não o deixo à consideração alheia. E não deixo que as palavras malditas que sobre ele possam ser ditas pesem na hora do seu adestramento. Porque este espelho não me deixa envergonhado.
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