This Mortal Coil, “I Come and Stand at Every Door”, in https://www.youtube.com/watch?v=KoDEVKlaW_A
Este bizantino desacerto, como se as pernas não estivessem em sintonia com o chão e os pés fossem sombras cambaleantes. A espuma que se desprende na extremidade das ondas desfaz-se no paredão gasto. O vento moderado arrasta os nódulos da espuma até aos bancos do jardim sobranceiros ao paredão, constituindo anfiteatro de excelência sobre o mar.
Passam dois idosos na companhia de seus cães, agasalhados contra as agruras do inverno (cães e idosos). Sentado na bifurcação entre o rio terminal e a embocadura do mar, fecho os olhos e sinto como se estivesse a ouvir uma música dominada por violinos. Que metódico esgar faço ao rapazola estouvado que, na companhia de adolescente feminina a condizer, treslouca o espaço circundante com a sua gritaria? Antes gostasse do som do silêncio; mas não naqueles preparos, que o sol raro do inverno quis conhecer este dia e as pessoas, sedentas de sol, saíram à rua e o burburinho é prova indesmentível.
Levanto o olhar, fazendo menção de me apropriar do espaço que se deita para além da linha do horizonte. São estas demandas abstratas, consumíveis na vacuidade de palavras amontoadas, que me deixam paradoxalmente revigorado. Não quero ser refém do lugar-comum. Não pretendo a distinção pública de nada. Só quero ser tutor das palavras na ordem em que ascendem ao pensamento. Não é tarefa pouca.
Sob a minha direita, um pescador dormita. Não dá conta do fio de uma das canas que balança vigorosamente, sinal de ter arpoado um peixe e parece ser de envergadura. Não o vou acordar. Não tenho o direito de acordar quem mergulhou no seu sono, mesmo que o peixe se consiga soltar do anzol na frenética luta pela liberdade e o pescador lamente a perda de tamanho pecúlio. Ou, talvez, a minha inépcia seja uma tortura para o peixe, que rebate o anzol com a força que tem e se consome no sangue exaurido. Não me interessa o dilema. Não me interessam os dilemas, pelo menos naquela altura de torpor – e se tenho direito ao torpor, como todos arregimentam o seu quinhão de preguiça! Oxalá o pensamento tivesse um descanso. E deixasse de vogar, errante, de apeadeiro em apeadeiro, ao deus-dará.
Detenho o olhar na margem contrária do rio, no leve declive que levanta a paisagem desde a orla do rio até ao seu epílogo, antes de mergulhar noutro vale. Vem à ideia a imagem de um cobertor verde deitado sobre o chão. Se dizem que as árvores são os pulmões que nos saciam o oxigénio, aquele cobertor não é o sufixo de asfixia. O caudal do rio corre, apressado, para o mar. Traz no seu dorso os vestígios do oxigénio aspergido pelo arvoredo. O salitre, lugar-tenente do mar, cuida de se apropriar dessas partículas, transformando-as na maresia quimérica que toma conta de entardeceres e de manhãs brumosas. E esta amálgama parece rimar com o meu torpor, contra o desejo baço de levitar o céu translúcido que desfila sob meu olhar cerrado. Não me empenho ao amanhã, isso é coisa certa.
Levanto-me e continuo a caminhar. Quase consegui pensar no tempo sem bastião sem mencionar a palavra “tempo”, ou uma palavra sua aparentada.
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