10.1.19

Máscara (short stories #89)


Plastic People, “Riding High on Acid”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y3WBdUb7WbI
          Uma máscara esconde o eu genuíno, ou é apenas a proteção exigível contra as contingências do mundo? Um manto não diáfano desce pela colina e estende um nevoeiro que embacia o olhar. Todos éramos atores, pois ao simulacro do outro correspondia, como resposta imperativa, o simulacro do eu. Tudo acabava por se desenrolar dentro de um palco onde desfilava um cortejo de máscaras – ou o palco que se desmembrava em múltiplos palcos, como palcos que emergiam dentro do palco anterior e as máscaras obedeciam ao mesmo ritmo palimpséstico. A certa altura, de tanta complexidade, já não seria possível saber se uma máscara era apenas a exigível reconfiguração do eu perante os desafios do mundo exterior, ou se era a segunda, a terceira, a quarta reincarnação da máscara inicial. Tudo sendo um acumular de sucessivas camadas sedimentando-se umas nas outras, a cada uma correspondendo uma máscara diferente. E qualquer pessoa, aprisionada na sua memória finita, perdendo o rasto das máscaras primevas, já não primordiais – como explicava o esquecimento. Neste estado de coisas, e perante a vulgarização das máscaras, refeitas as coordenadas vigentes, já ninguém prescindia de máscaras (no plural). Já não fazia sentido se não olharmos uns nos outros através das máscaras, até das máscaras indeléveis que se fingiam através do rosto aparentemente não disfarçado. Já ninguém reconhecia rostos não ornamentados por máscaras. As máscaras passaram a ser o rosto visível. Já ninguém sequer retirava a máscara antes do deitar. A osmose entre rosto e máscara deixara de ser um problema. E nem as demandas heurísticas, sobre a perda de genuinidade à mercê das máscaras, pareciam ter sentido. A normalidade tinha sido redesenhada. O vínculo ao fingimento dera caução à substituição dos rostos por máscaras. Até no dicionário: a palavra “rosto” fora banida. Em sua vez aparecia a palavra “máscara”. Mesmo os nascituros conheciam o mundo através da máscara que traziam à nascença. E todos eram atores. Num palco imensurável, com várias estratificações, com várias máscaras a preceito das circunstâncias. Parecia que deixara de fazer sentido reclamar a genuinidade. As máscaras passaram a ser o selo válido do genuíno.

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