Radiohead, “Recknoer” (Thumbs down version), in https://www.youtube.com/watch?v=8OS1U8LjjZw
(Ato primeiro: simulacro de defesa do otimismo irritante e da magnífica gesta que é excessiva na portugalidade que somos)
As provas abundam: a crise, palavra que muitos desafortunados teimam em inscrever num quadro de perenidade, está em crise. A felicidade devia ser determinada por decreto. Só os mal-intencionados e os incorrigíveis pessimistas (a par com os que medram na desgraça congénita) não reconhecem as boas águas em que navegamos. A crise entrou em crise e os que estão habituados a porfiar na crise ficaram a braços com uma intrínseca crise – a que tomou conta deles próprios. Fazem lembrar abutres, de atalaia à espera da primeira oportunidade em que os céus se tingem de nuvens negras, para pressagiarem nuvens ainda mais plúmbeas. Alimentam-se da crise e só sabem viver com o pano de fundo sombrio da crise. Se ocorre o horizonte se limpar das excrescências que são nefastas para o bom viver do povo, abespinham-se, contraem-se nos seus músculos turgidos, acordam contrariados por causa do tempo soalheiro que veio em substituição do seu habitat natural.
A crise da crise é a meta-análise de um sentir sorumbático, depressivo, talvez nos despojos da falência de (mais) um sebastianismo, uma orfandade advinda de crises pretéritas. Estas personagens azedam na melancolia paradoxal que se entabua quando tudo faria crer que os sintomas apontassem em sentido contrário. Quem não gosta de um palco livre do estigma da crise? Só os que se habituaram a conviver com a crise, saltando de crise em crise, até que intuem que a crise é o estado constante que nos reduz à incapacidade de sermos alguém que olha o porvir com um sorriso descomprometido, de alguém que desaprendeu a usar a palavra “esperança”. A crise da crise é a crise que está em crise. Para infortúnio dos ascetas que nidificam na crise. Manter este comportamento é produto de má-fé (por não admitirem que a crise está em crise), ou patologia incorrigível.
(Ato segundo: a defesa de honra dos visados no ato primeiro)
Os ventos não sopram sempre favoráveis. O clima não é uma constante. Nem as marés. Nada é constante e tudo se expõe à contingência. No movimento oscilante que são os ciclos, devia-se tirar partido das lições da história. Pode a crise ter suspendido as suas funções. Aproveitem-se os ventos contagiantes que sopram de outras latitudes e que aspergem bons efeitos. Não seja, contudo, dada caução à falácia do otimismo irritante. Os bons ventos podem desviar para outras latitudes – ou, pura e simplesmente, hibernar por período indeterminado. Nessa altura, os otimistas irritantes não se poderão esconder em pretextos ou ardis argumentativos. Terão de reconhecer que a crise da crise não foi um sintoma de que a crise estava em crise. Não será a crise que esteve em crise; foi apenas uma descontinuidade na crise.
É compreensível que, na intermissão de duas crises, se distinga o clarear dos rostos e um módico de otimismo tome conta do tabuleiro onde se dispõem as peças do jogo. Adulterar a lógica embebida numa historicidade indesmentível é um logro. Da mesma forma que os otimistas irritantes preconizam a felicidade ditada por decreto, não seria má prática prever, em leis criminais, a punição dos que vendem, a destempo e com a promessa de ser imorredoiro, o que de bom existe e que, está provado pela história, não dura para sempre.
Pois é de crise em crise que o mundo tem avançado. E prosperado.
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