30.1.19

Sufrágio (short stories #92)


Bob Moses, “Heaven Only Knowns”, in https://www.youtube.com/watch?v=xjt6tZmuoWM
          Por que palavras seria escrutinado? As que escrevia? E se não escrevesse nada? Se apenas as dissesse, as palavras – seria apenas por esta medida que seria inventariado num sufrágio? E quantas seriam as palavras deixadas de fora do inventário e, logo, não sufragadas? Mesmo que apenas contassem as proferidas, seria exercício rigoroso? Não poderia decantar as palavras, metodicamente libertar as que apenas fossem compulsadas num sufrágio favorável? Ou, pelo contrário, indiferente ao fervilhante pulsar dos outros, diria as palavras que apetecesse, sem esmorecer o sono temendo o mau sufrágio sobre elas? Talvez as frases não devessem terminar em pontos de interrogação. A reação só é epidérmica se formos caução própria de uma seriedade que é o rebate de nós mesmos. Que perda de tempo, acreditarmos que temos de nos levar a sério. É o critério fiável para não descuidarmos a consciência quando traduzimos um mau escrutínio dos outros. Não é que essa empreitada interesse muito; por vezes, é irrecusável: e lá decaímos, quase sem dar conta, no escrutínio dos outros. Como se fosse preciso como imagem mimética do escrutínio que, diz-se, outros de nós fazem. Não tenciono destemperar as palavras, deixá-las seletivamente assisadas, ou despojadas de sal, só porque o escrutínio possa agilizar o despeito. Cuidada a responsabilidade pelas palavras, e sabendo que, uma vez seladas (por escrito ou pela voz), elas são irremediáveis, o escrutínio é um não assunto. Não fugir das palavras, das ditas e das escritas, é exigência de honra interior. Não importa determinar como são as palavras detidas por quem as ouve, ou por quem as lê. A soberania da subjetividade, a intensa diferença que medra por dentro de cada pessoa, não autoriza a singular, unívoca hermenêutica. Como são acolhidas as palavras, é responsabilidade de quem as interpreta. Quem as diz, ou quem as escreve, não pode ter a intendência de pressentir a exegese que delas se faz. Sob pena de o feitor das palavras se aprisionar na possível constelação de sentidos que poderão ser atribuídos por quem as recebe. Não seria do domínio da justiça, e das possibilidades legítimas, abrigar esse sentido especulativo. E seria uma ceifa a adejar sobre a liberdade de quem tutela as palavras.

Sem comentários: