15.1.19

Epistemologia do filho da puta


Idles, “Mother”, in https://www.youtube.com/watch?v=BuQG6_evFc8
Não é preciso sermos filólogos para termos a impressão de como a língua (o idioma) é maltratado com uma frequência assustadora. Não é por erros ortográficos, ou de sintaxe, ou do mau uso da gramática que este texto vem ao caso. Trata-se do emprego desenquadrado de étimos e expressões, com consequências não antecipadas por quem é responsável pelo uso indevido. 
Um insulto assíduo é dirigirmos ao insultado a noção de que sua excelência é filho de uma meretriz. Ao chamarmos filho da puta, não damos conta do seguinte. Primeiro, muitas vezes desconhecemos a identidade da progenitora, pelo que o risco de cometermos uma injustiça (e uma injúria) é elevado. Segundo, mesmo que tenhamos conhecimento do paradeiro da senhora, não podemos afiançar (regra geral) que a dita se dedica ao mercado da venda de prazeres sexuais. Arriscamos, outra vez, o insulto gratuito e sem fundamento fático, com a agravante de estarmos a pisar o limiar do ilícito, pois insultar alguém por algo que essa pessoa não é pode constituir o crime de injúria. Terceiro, mesmo que as duas hipóteses anteriores não se confirmem, e a senhora mãe do insultado se dedique à prostituição, acusar o insultado de ser o que ele é não pode representar um insulto. Se o propósito é o vitupério, pecamos por defeito. 
Porventura o mais frequente é a expressão “filho da puta” ser usada como lugar-comum do insulto, sem se poder fazer uma interpretação literal das palavras contidas no insulto. Quando se diz a alguém que essa pessoa tem o inditoso fardo de ter sido gerado por alguém que vende o corpo aos prazeres sexuais de outrem, estamos a admitir (provavelmente, com uma elevada dose de erro à mistura) que o insultado foi concebido por uma meretriz e que esse é um facto da sua história de vida que o deixa menoscabado. Ora, pode acontecer que o filho não tenha renegado a mãe, pelo que acontece, outra vez, o insulto acertar ao lado. Ou pode dar-se o caso de a senhora não ser aquilo que o insulto identifica e, nesse caso, o ultraje atinge duas pessoas (pelo menos): o insultado que é filho de uma senhora que, afinal, não tem os “maus pergaminhos” (no entender das convenções sociais estabelecidas) que vêm de arrastamento com o opróbrio. 
Não seria mal pensado termos travão na língua quando não reprimimos o instinto de chamar a alguém filho da puta. Na maior parte dos casos, estamos a ofender mais a mãe do insultado do que o insultado. O tento na língua é recomendado para não errarmos no alvo da ofensa (se for determinante proferir o insulto, caso em que se conclui não estarmos serenos dentro da nossa identidade e nos prestarmos a convulsões escusadas). Se chamarmos filho da puta a alguém, o maior ultraje não repousa na pessoa do insultado, mas da sua mãe. E, quantas vezes, a senhora, em não sendo aquilo de que vem acusada no ínsito do insulto, não tem culpa de ter parido um canhestro, nem é responsável pela personagem soez em que ele se transformou.

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