Grand Sun, “She Wants You”, in https://www.youtube.com/watch?v=vI5OZRCi1BE
Vernissage. Passam os canapés. E o – dizem – escol, o retrato de uma certa elite que despreza as convenções e que, no entanto, não dispensa tratos de polé, convivendo com os que cultivam a frivolidade da socialização dos altos estratos.
Este homem tem de estar na vernissage. Contrariado. Está em representação de quem tem lugar cativo na celebração. Este homem está como peixe fora do lugar. Corpo estranho. Entretém-se com os canapés e a passar em revista o desfile de eminências pardas, os salvos-condutos de uma certa intelectualidade que, a espaços, se entrelaça com uns abencerragens do soi-disant pináculo social. Detestam-se; reformulando: os que frequentam tertúlias da intelectualidade escrevem páginas e páginas escorrendo o seu marxismo irreprimível, na negação absoluta do estrelato social dos outros com quem convivem naquele lugar; estes, desprovidos das mesmas capacidades de intelecto, aproveitam a oportunidade para o desfile de passarela, com a vantagem de virem na companhia dos intelectuais do lugar. Esperam que a inteligência seja por contágio.
Os canapés. Este homem não consegue descobrir os ingredientes de alguns dos canapés. A páginas tantas, o caviar. Este homem é alérgico a caviar. Não na literal aceção de alergia; não aprova o sabor do caviar, que lhe causou, no par de vezes que ensaiou a degustação, náuseas. É a hora do caviar. Os comensais despertam da conversa de ocasião, dos gestos fingidos, do sorriso forçado em reação à desajeitada graçola de outrem, porque a etiqueta exige a sociabilidade – é para isso, também, que inventaram as vernissages. O caviar desaparece num instante. Este homem ficou a um canto. Se não se engana, foi o único a ficar a um canto, recusando ao caviar. Os herdeiros do marxismo e os polidores da feérica visibilidade social convergiram no caviar.
Depois do caviar, veio a função que trouxera a heterogénea fusão de gente à vernissage. O bardo que tinha um pé na intelectualidade e outro no púlpito social apresentava um livro. O bardo, em pose socialistamente aristocrata, não cabia dentro do seu ufanar à medida que o letrado convidado se desfazia em genuflexões e ditirambos sobre a obra e o seu autor (não necessariamente por esta ordem). Ainda se notavam uns grânulos de caviar nos interstícios dos dentes do letrado. Este homem que não gosta de caviar era capaz de jurar que, a certa altura, em extática glorificação do bardo, um perdigoto contendo um grânulo de caviar foi cuspido, aterrando no decote abundante de uma senhora da alta sociedade, que nem deu conta. Os despojos do caviar ali jazeram, na véspera dos seus fartos peitos, e só este homem que não gosta de caviar o conseguiu apreciar, à distância.
O homem que não gostava de caviar não aguentou até ao fim da função. O odor a caviar tartamudeava na sala, apoderando-se dela. Ninguém notou a sua ausência prematura. Ainda bem. À saída do lugar, resgatou a sua identidade.
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