O olhar decanta-se das impurezas que o agridem. Pedaços de vidro esmagados que podem ferir o olhar. Há memórias que podem ter esta serventia. Mas a memória serve-se das pestanas que decantam as memórias, uma seletividade exigida pela temperança da alma. Há, todavia, um sentimento de frivolidade no exercício que separa o que da memória tem o condão de agredir a alma. O notório fingimento não aplaca as apoquentações que se sedimentam no alfobre do tempo. É como se a memória fosse o primeiro agente agressor de si mesmo e dela viesse uma lava colossal que contamina o sossego. Que préstimo têm essas memórias azedas? São tutela nefasta, uma cortina espessa, encardida, que se deita sobre a fazenda que acolhe o dia presente. As pestanas purificam o olhar. São à prova de memórias contrafeitas – contrafeitas porque não resolvem o dia presente e são imagens reavivadas sem propósito reconhecido. Deixam o olhar livre dos embaraços que se remoem no tempo pretérito e embaciam o olhar que se perde no labirinto que censura o diletantismo. E o olhar abre-se total, como escotilhas que deitam os fragmentos do mundo para dentro da alma. Amanhece na protuberância da claridade singular que determina o dia. Nas pestanas se contêm os embaraços que ficam à porta do olhar. Não é fingimento: um mau olhar – aquele que se enreda numa teia que não aproveita à serenidade – não se desconta ao património do acontecido; mas as pestanas agem como um bondoso censor interno que aparta do palco as memórias que intuem um contrabando da alma. Não deixam à mostra a conspiração dos acontecimentos idos contra a fragilidade do hoje. Não há quem lhes confira o reconhecimento que merecem, na sua discreta diurese. Às vezes, é um ator de terceira linhagem que contém a madurez dos princípios.
30.6.20
Pestanas sem embaraço (short stories #229)
29.6.20
Desvento
Um catavento tem por serventia aprisionar o vento? A pergunta não era inocente. Saldou-se a resposta com outra pergunta: qual é a tua árvore favorita? Depois da surpresa, e de confessar que não percebia a gramática da pergunta (o que tem a ver com a pergunta antecedente?), fez a vontade: buganvílias. E se a noite for temperada por um luar amortalhado, o que tens a dizer? Às perguntas desconcertantes, sem fio condutor, ia respondendo, não sem esboçar alguma contrariedade: fico extática com o luar irredentista. Não é todos os dias que vemos um luar assim. É como nos eclipses. Factos marcantes. Não se desperdiçam.
Não distraída com a sucessão de improváveis interrogações, insistiu: um catavento tem por serventia aprisionar o vento? Se não pensarmos na porosidade das areias onde se decantam as palavras ditas, fica apenas a fala venal, um caroço no meio da fruta – e um caroço é um embaraço para os que se servem da fruta, mas também é a sua semente. Ela continuava a não compreender os termos do diálogo. Era como se estivesse metida à força numa conversa de loucos com um tempero de surrealismo. Mas não se demoveu com o exercício loquaz. Ele não ficaria sem resposta, mesmo que tivesse de improvisar um punhado de palavras que soassem a resposta. Disse: os caroços, destino-os ao lixo.
Mas diz-me de uma vez por todas: um catavento tem por serventia aprisionar o vento? Como réplica, um desfile de interrogações: acreditas nas gólgotas que transcendem o exílio a que foram condenadas? Acreditas no tempero milimétrico para as iguarias? Acreditas que as janelas têm avesso? Acreditas que as honrarias aos figurões são a exaustão da igualdade que eles apregoam? Acreditas...acreditas...no que acreditas? Ela não queria sentar-se no divã do psiquiatra, ou sentir-se refém de um confessionário. Estava a ficar cansada do jogo virado do avesso, em que o demandado se tornava demandante. Não respondeu a nenhuma pergunta, devolvendo outra interrogação: por que foges da pergunta que foi o ponto de partida?
Demorou a resposta, para melancolicamente admitir que não há resposta. Não há respostas. Que trágico mister o dos assoberbados pela certeza, que desenham respostas céleres, mas, todavia, não testadas, às suas perguntas. E adiantou: sabes, não sei para que serve um catavento. Se levarmos a palavra à letra, parece que captura o vento. Mas será que todo o vento cabe nas hastes do catavento? Age como força centrípeta, o vento todo aglomerado nas hastes do catavento?
Ela arriscou uma hipótese: se calhar, o catavento transfigura o vento em desvento. Não é o que acontece aos que são erradicados da liberdade? Não se tornam inertes, uma pálida caricatura do que foram em liberdade?
De uma coisa tinham certeza: não saíam do estatuto das interrogações.
26.6.20
O sem emenda (short stories #228)
Tinha um fado escrito com a poeira das estrelas. Era um fado baço, as sílabas estilhaçadas pelas vírgulas do tempo. Uma espécie de roteiro para o infortúnio. Um roteiro ditado por uma singularidade: ele era o fautor dos próprios desares, e estava consciente das ações e das consequências. Podia um observador erguer a perplexidade pelo desprendimento, ou como não era possível incarnar um mínimo de aprendizagem que evitasse as recaídas. Até ele percebia essa lógica. Na hora H, falhava sempre uma peça – e das importantes. Tantas vezes os preparativos foram exaustivos (assim o considerava) e depois fracassava; a última decisão, aquela que contava, viria a ser o espelho vindouro de um equívoco. Tantas vezes jurou que não haveria mais vezes assim. Mas reincidia. Reincidia sem ser por acaso. Parecia que era de propósito. Como se pelas veias corresse um sangue em ebulição com a marca registada do masoquismo. Em seu socorro sobrava a virtude para derrotar as mal-andanças. O levantar-se e saber que a manhã era o fermento para se levantar do chão que tocara. E prometer que a manhã seguinte seria menos difícil. Até que resgatasse a bonança, só à espera de outro passo em falso, só à espera de experimentar o precipício outra vez. Era o sem emenda. Ninguém o conhecia por esta alcunha. Tinha sido cunhada por ele, em segredo. E nem com a madurez entretanto preenchida circundou a doce apoplexia do medo de não ter medo. O frémito de intuir o fino fio do arame sobre o precipício era o que o movia. Não lhe ensinassem a palavra “normalidade”. Já eram tantos anos e sempre a errar (no sentido de ser propositadamente errante) que não haveria modo de corrigir o defeito. Talvez nem fosse defeito. Só o é para os que repetem o erro e se mortificam sem remédio. Ele era o sem emenda. Mas não queria deixar de o ser.
25.6.20
Nariz adormecido (short stories #227)
Não podia ser Pinóquio. (A frase ficaria diferente se uma vírgula precedesse o nome da personagem.) Dizia-se que eras mentiroso porque crescia o nariz à medida da mentira que contavas. Mas nunca foi perguntado se o nariz também crescia se a mentira medrasse na omissão. Podia o nariz reagir ao silêncio comprometedor? Pior seria o cenário se pela vida fora conquistasses a palma de gastrónomo. Foi o caso. Para além de detetor de mentiras, o teu nariz teve uma serventia profissional, ao sabor dos odores que perfumavam as iguarias preparadas. Envelheceste, Pinóquio. Como acontece com os varões que envelhecem e perdem aptidões carnais, o teu nariz foi enfraquecendo. Uma perda de qualidades que te fez exultar: era mais difícil apanharem-te na mentira. (E quem gosta de ser apanhado na curva de uma mentira?) O nariz foi hibernando. E tu ponderaste reaprender a mentir. Não é que te interessassem os meandros da mentira; tinhas-te em boa consideração no universo da lisura e não foram frequentes as mentiras, aquelas mentiras que desatavam uma intensa ereção do nariz. O problema é que à mínima mentira eras denunciado pelo nariz que se emancipava da vontade. Era uma vergonha. À custa disso, pôde-se confirmar (assim o segredou um amigo do peito de certas divindades) que eras dos menos propensos à mentira. Consideraste, pois, a hipótese de te vingares de todo o tempo em que a mentira era tão custosa. Uma vingança contra o nariz que algumas vezes te deixou ficar mal. Desististe dos planos. Eras demasiado honesto e já não conseguias adulterar a tua natureza. Preocupou-te mais a linhagem de gastrónomo. Mal conseguias distinguir o aroma das ervas aromáticas. Chegou-te aos ouvidos que os cozinhados começaram a ser menos apreciados. Estavas a ser atraiçoado pelo nariz, outra vez. Ao que soubeste, depois de intensa investigação, ainda não inventaram um comprimido azul para desbloquear narizes adormecidos.
24.6.20
Arredondamento (short stories #226)
Um retrato sela a distância do tempo. Outro calibre da angústia, se através do retrato se afivela a tremenda diferença para o espelho do presente. É como se o intervalo entre dois tempos diferentes fosse o produto de um arredondamento. Descelebra-se a incontinência do tempo, ou a madurez do corpo que é a sela onde o tempo se cavalga. Mas os arredondamentos são feitos por defeito ou por excesso. O cotejo dos tempos é feitor de um arredondamento por excesso. É como se a passagem do tempo adicionasse sucessivas camadas ao corpo e ele se tornasse volumoso, às vezes disforme, pressentindo a decadência. É uma marca da janela por onde o tempo se insinua. São improcedentes as exortações à repristinação do tempo, que ele só conhece uma palavra. Outro critério será bom conselheiro. Em vez da amargura de quem carrega as baterias da autocomiseração, acusando o tempo de ser implacável (como se o não fosse com qualquer outro mortal), admita-se ao convívio a irrisória natureza do tempo. Ninguém nasce para ser novo para sempre. E se alguns se tornam peritos no envelhecimento precoce, não têm serventia as simulações que fingem uma idade que se não tem. Por mais que se convoquem sortilégios destinados a fazer do tempo um arredondamento por defeito, a tarefa acaba por aguar. O menor dos custos é aquele que aplaca frustrações evitáveis. Os que adiam a velhice sob a capa protetora de ilusórios disfarces estão fadados a uma aterragem forçada, violenta, dolorosa. Antes tivessem sabido conviver com o inelutável. Antes lhes fosse dado a saber que forjar um arredondamento por defeito é um ardil que se joga contra o seu fautor. O olímpico triunfo é aquele que não resiste às ordenanças do tempo. Sem lutar contra ele, nem por inércia o apressar. O amanhã não se compadece com arredondamentos.
23.6.20
Por linhas direitas (short stories #225)
Não sei que nome usar no palíndromo que se habilitou no mundo. As pessoas evocam arremedos de justiça divina (“escrever direito por linhas tortas”), como se a empreitada não fosse atingível. Às vezes, parece que temos uma lente desfocada que traz o entendimento baço. Distraímo-nos com as irrelevâncias transformadas em matéria estrutural por gente desinformada. Se houver um módico de rigor e lucidez na medida das coisas, elas aduzem-se na sua simplicidade. Sem sermos apostrofados pela incúria, a nós se deve a inútil complexidade das coisas. Se desmatarmos as camadas em que se fingem as coisas, chegamos à sua medula, o cerne da simplicidade. Aprende-se que mesmo nas curvas mais sinuosas se consegue escrever por linhas direitas. Mais tarde ou mais cedo. E por mais que uma certa descortesia pela espécie possa espreitar pela escotilha, desconfiando do triunfo perene da lhaneza, ao cabo da demanda é o desiderato que se confirma. A complexidade enovela-se nas suas entranhas. Especiosa, esperneia seus múltiplos tentáculos que esperam enxertos de outras variáveis que adicionam mais complexidade, num turbilhão inacessível, o precipício mesmo à espreita. É como se fosse o poço da morte, a vertigem do ininteligível a coberto de aspirações eruditas. Os seus intérpretes acabam a falar em linguagem cifrada, todos fazendo de conta que se entendem mutuamente, quando apenas tornam mais densa e logogrífica a linguagem. Um enredo em que são surdos os que intervêm nas falas. Disfarçados atrás de nomes pomposos, mas inaptos para tirarem as medidas aos mínimos denominadores comuns. Tornam-se peritos em escrever torto por linhas tortas. Uma cacofonia. Até que, em estado catatónico, sem saberem o lado do poente, sucumbem ao apelo do regresso ao quilómetro zero. Não têm de reaprender a ler e a pensar. Mas quase. Essa é a serventia das linhas direitas.
22.6.20
Até ao crepúsculo que se emancipa
Admitem-se ao estuário os rostos emaciados que pedem tréguas. O rio, como se fosse um altar de águas termais. Purifica os meandros calcificados que se esgotaram nas veias encardidas, habilitando a angústia das almas estilhaçadas.
Admitem-se os rostos, sem franquia. A toda a hora. Podem ser matinais, carregando ainda o peso intemporal do arrependimento. Não têm de pagar honorários. O estuário é imenso, comporta uma multidão de olhares trespassados pela melancolia, não sabe o que é o lucro mastim. Espera-se que o rio atue com a linhagem medicinal das águas termais e repare as arestas gastas que se desafeiçoam dos rostos, tornando-os macilentos, estremunhados com as cores ácidas com que o mundo vem servido, consumidos por sobressaltos por inventariar. Mal entram nas instalações do estuário, são convencidos ao despojamento do lastro que carregam. Como se tivessem de se esvaziar para se congraçarem na praça onde o processo heurístico acontece. Os impetrantes são avisados para não esperarem milagres. Esses, são de outra lavra (o cimento de um escol e dos patronos da metafísica).
Possivelmente as almas admitidas no estuário não se recordam da estadia. A hibernação seduz ao esquecimento de quem são, ao esquecimento do que são. Ficam em letargia, banhados pelas águas tépidas do rio, à mercê das discretas marés que serpenteiam em rima com o relógio. Não se pode dizer quanto tempo ficam em letargia. Depende de cada pessoa. Da profundidade das suas angústias. Da vontade, naquela altura independente da vontade que se julga dominar, para sepultar os arrependimentos, as aflições, os compungimentos estéreis. Até que o crepúsculo emirja no horizonte tardio e faça desmaiar a luz diurna. O crepúsculo inaugura o espaço sem paradeiro entre o dia e a noite. É terra de ninguém. O lugar para as almas se libertarem do coma induzido e caminharem por sua vontade. Uma vontade desenhada a partir do zero.
Até que o crepúsculo seja o firmamento sem esteios, na véspera da reinvenção que se exige, num processo demiúrgico que refaz as fundações em que as pessoas se suportam. À saída deste labirinto, os rostos dantes torturados que clamavam por tréguas podem ser diferentes ou podem ser iguais. Não interessa. Só interessa reconhecer o mergulho à medula da alma, lá onde se refugiam os seus críticos esteios, e saber que não são os estéreis arrependimentos que ditam a reinvenção das pessoas.
O estuário, à espera do crepúsculo emancipado, cuida do restante.
19.6.20
Os anjos que caem (short stories #224)
Namoravam a verdade. As asas acumulavam os sinais da maresia, sendo vizinhos de marítimas paisagens. Não se viam. Pressentiam-se. Tinham uma palavra de conforto para as almas enrixadas e que não queriam ser erráticas. Não dormiam. Vigilantes, a tempo inteiro, cuidavam de reparar os malsãos arquitetos que não hesitavam em trespassar almas descuidadas. À sua boca, as palavras pareciam ornamentos que cintilavam com o céu como pano de fundo, como se estivessem alimentadas por néones. Dizia-se que havia sempre um anjo de respaldo para todas as almas. Até para as que sobranceiramente juravam delas prescindir. Mas ninguém cuidava dos anjos. Não havia anjos que fossem tutores dos anjos. Essa era a sua fragilidade. Ninguém a intuía. Julgava-se que os anjos cuidavam de si para além de tutelarem as demais almas. Às vezes, os rudimentos que parecem fortalezas disfarçam estilhaços. Sem se ver, ameaçam ser escombros. Os anjos não sabiam domar os sismos que os fundiam em cinzas. Por mais que adejassem no seu estatuto etéreo, os anjos emudeciam quando os esteios em que se fundavam estremeciam no parapeito da fraqueza. Pois os anjos eram acometidos por fraquezas, embora as escondessem – embora as demais almas, convencidas da inerrância dos anjos, não tomassem tenência das suas fragilidades. De vez em quando, um anjo caía. Como um cometa, efemeramente tracejando o céu com um rasto de luz iridescente. Não se sabia onde caíam. Desvaneciam-se em fugazes cinzas que se repartiam por um imenso chão. As demais almas vertiam uma lágrima condoída quando sabiam do perecimento de um anjo. Mas sabiam que o anjo deixara um derradeiro legado ao fazer-se espalhar em forma de férteis cinzas por um imenso chão. Era a sua forma de nos precatarem depois de partirem. Os anjos caíam, mas não nos deixavam sós.
18.6.20
A árvore do meio (short stories #223)
Tricky, “Fall Please”, in https://www.youtube.com/watch?v=yAEiIF5parQ
Diabos de igreja trovejam sobre o átrio vazio. À frente, o arvoredo. Umas pessoas tardiamente no lugar refugiam-se do tumulto sob a proteção do arvoredo. Assistem à coreografia iracunda dos diabos de igreja, que esboçam a vingança contra os excelsos modos que o mundo prepara na distração dos vultos enodoados. Juntam-se os prefácios em tirocínio. Inventariam-se os fantasmas e os modos possíveis de os exorcizar. Não se peticiona a mudança apenas pela mudança, se as pessoas tardias o são por não serem ali esperadas a desoras. Mas quem estabelece o horário de atendimento? Podia demandar-se uma procuração para desembaraçar o lugar e o horário de atendimento às almas penhoradas; a função seria em vão. Os diabos de igreja não capitulam. Quando a desordem parece amansar, eles remoçam e disparam as centelhas fulminantes que incendeiam o medo. As pessoas tardias começam a temer efeitos piores. Seriam vítimas dos diabos de igreja tresloucados? Tinham em débito uma série não frugal de culpas. Não transitavam pela cumeada do arrependimento. Sabê-lo-iam os diabos de igreja? Do pouco que avocavam dos cânones metafísicos, às pessoas tardias não era dado a lembrar a veia vingativa da religião nem dos seus testas-de-ferro. À cautela, consideraram a emergência de proteção reforçada. No arvoredo estava, centrípeta, uma árvore distinta, com copa larga e abundante ramagem que tombava sobre o chão em forma côncava. Correram entre as árvores, assustados com o troar enfurecido dos diabos de igreja. Mal chegaram à árvore do meio, o sobressalto dissipou-se. A árvore do meio era pródiga em aplacar as fúrias irreprimíveis, como se fosse uma serena barragem que represa sentimentos malparidos. Esperaram algum tempo, não fossem os diabos de igreja estar de atalaia, só à espera que eles, pessoas tardiamente deslocadas, saíssem da proteção da árvore centrípeta. À saída do arvoredo, olharam para trás. Não havia sinal da passagem do furacão dos sentidos afivelado pelos diabos de igreja. Nem sinal dos diabos de igreja.
17.6.20
Periscópio
Dizias: a lua tem espinhos e não sabemos se eles estalam na boca.
E eu dizia: não queremos ter o sabor de arbustos na boca. Ficamo-nos pelo luar que se desembaraça das finas nuvens. Um portento de um escultor anónimo. As uvas que adoçam o sangue.
As mãos atadas cuidavam do resto. No emaranhado da escuridão, os olhos benziam o culto pesar da honestidade, uma mnemónica pagã. Essa era a nossa religião. Dizíamos, em uníssono: nesta demanda, somos à prova de corrupção. Não deixamos que os braços se amordacem no agravo que liquefaz a honestidade. No acerto de contas, não queremos ficar devedores. A adstringência da alma joga-se contra os pesadelos de que não somos sombras.
Dizias: confere o manual de instruções. Segue essas linhas baças. Procura uma lupa, se preciso for. Para intuirmos as regras a que não devemos obediência. Se for preciso, tracemos as bissetrizes da loucura. Da nossa loucura.
E eu dizia: são estrofes de um poema arrebatador, as tuas palavras.
No fausto onde amesendávamos, éramos ao mesmo tempo lídimos gastrónomos, os arquitetos das iguarias que desfilavam em interminável banquete. Não era a chuva que nos intimidava. Não eram as reprovações hirsutas dos guardiães das morais que conseguiam ganhar lugar nos murais que se congraçavam no olhar. O imperativo do sonho que vivíamos de viva voz era mais convincente: que não nos falassem de fronteiras, que seríamos os primeiros contrabandistas. Sem disfarce. Dizíamos que as nossas almas se reproduziam em incontáveis arremedos, mas que só podíamos contar com as originais. Tutelávamos com rigor o perfunctório desviver com a convocatória do seu oposto. Sabíamos como fazer triunfar o lado sublime que tinha paradeiro na poesia.
Dizias: eu sei que posso contar contigo. Armadura pétrea, fortaleza escondida dos mapas, cartografia que eu sei dedilhar de cor. Eis-me aqui, teu livro aberto. Folheia-me.
E eu dizia: nada me apraz mais. Sei-te meu periscópio, a caução do que se observa através da janela que se abre ao mundo. És essa janela, a prova dos nove, matéria singular que em meu sangue se torna recordação do porvir. A calmaria feita ebulição. Não preciso de mais nada.
Imaginávamos paisagens. Lugares que prometemos arregimentar no nosso atlas privativo. Descobríamos os passos ímpares enquanto as mãos permaneciam atadas. Em sua liberdade. Éramos corpos siameses. No sonho que se mantinha de viva voz.
16.6.20
O bolbo da festa
P. J. Harvey, “You Said Something” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=-zB0UzHGo4s
O bolbo infante não sabia ao que vinha. Medrava, ainda. O processo de fotossíntese fazendo o seu caminho. Já emergira do húmus e começava a aprendizagem do mundo. As pessoas eram sempre as mesmas, cumprindo uma rotina matemática. Envergavam luvas e traziam o mesmo rosto impassível. Não falavam. Limitavam-se aos procedimentos estabelecidos num manual. Um estranho aparelho que traziam a tiracolo servia para avivarem a sequência dos procedimentos. O bolbo sentia-se cortesão no horto. Eram de polé os tratos que eram seu merecimento. Devia ser de linhagem sublime – chegou à conclusão, ainda durante o amadurecimento.
Um dia, ouviu um dos tratadores. Afinal estes humanos também falavam. E ele, o bolbo de casta, entendia a linguagem dos humanos. O tratador disse para si mesmo: “estás a ficar um belo bolbo. És um bolbo premium. Terás destacamento. Pelas minhas contas, daqui a duas semanas estás a florir. Partirás para engalanar uma cerimónia importante. É a minha aposta.”
O bolbo não cabia em si de contentamento. E não contia tanto orgulho. Era um exemplar garboso, um exemplo para os da sua espécie. A crer no diagnóstico do tratador, o bolbo seria um espécime raro. As portas do reino que se abrissem que o bolbo seria seu enfeite resplandecente. Os altos dignitários ficariam extasiados com a sua pose fidalgal. Comentariam sobre a pujança do bolbo, a perfeição das folhas que se destacavam da raiz, a cor garrida, depurada. Seria o bolbo do reino.
No dia solene em que o bolbo foi cuidadosamente encaixotado, o dia do adeus ao horto que o cultivou, o bolbo ainda não sabia do seu destino. Umas vozes murmuravam ao longe. Ele não conseguia distinguir as palavras ditas pelos homens e mulheres que trabalhavam no carregamento do camião. O bolbo tinha planos ousados. Mostraria a sua beleza singular nos salões onde a nata do reino e os embaixadores de outros países desfilariam em distintas celebrações. Seria o bolbo da corte.
O pressentimento não quadrou com a imensa consideração que o bolbo tinha de si mesmo. Foi parar a um salão sem o quilate da dinastia dos escolhidos. Era um salão de festa. A azáfama dos circunstantes não deixava dúvidas. Punham as mesas, ornamentadas com enfeites exuberantes e policromáticos. Cuidavam de todos os detalhes para que nada fosse fracasso. Um indivíduo altivo não parava de emitir ordens em voz audível. Repetia à exaustão: “não pode falhar nada. Não pode falhar nada”.
O bolbo foi parar às mãos da personagem. Apreciou-o, demoradamente (a personagem ao bolbo). “Este serve”, ainda ouviu, antes de passar de mão em mão até a uma mulher que fazia o arranjo das flores. Umas horas mais tarde soube do seu destino. Era ornato na festa de casamento da filha de um messias da finança que primava pelo kitsch. O bolbo não conseguiu reprimir uma lágrima de melancolia. Ele, que tão ambiciosos planos fizera, acabara como bolbo da festa – e de uma festa carregada de kitsch.
O bolbo aprendeu que não é bom conselheiro terçar planos tão metodicamente congeminados na epígrafe de uma elevada autoconsideração. Se houver lugar à frustração de tais planos, só fica a angústia como mercê da autocomiseração.
15.6.20
Princípio geral da trégua
Vão exacerbados os vapores que infetam os dias correntes. O acerbo digladiar de palavras ferve na sua própria ebulição, somando mais um par de graus à medição do termómetro. À escalada de argumentos, a exaltação atinge o ponto de lava. As pessoas já deviam ter aprendido que as posições exacerbadas se alimentam reciprocamente. Não costuma ser bom conselheiro, um cenário assim montado.
Ao rastilho ateado por uns radicais, outros (que julgam não o ser) ripostam com idêntica medida. Pensarão que não podem deixar os primeiros radicais com rédea solta. Desconfio se os radicais por reação o são por reação ou se contêm o gene do exacerbamento, mas apenas em hibernação. O gene liberta-se quando é provocado por um gene gémeo, mas de linhagem oposta. Seria bom que não nos esquecêssemos que não há posições exacerbadas benignas. O passado ensina que as posições assanhadas são o fermento do asnear. Diz-se e fazem-se coisas que não são credoras da razoabilidade. Quem assim é apanhado em falso não tem a noção das desmedidas. O que agrava o estado das coisas.
Diante da lava incandescente que bolça das bocas que dissolvem uma justa medida das palavras, soergue-se o princípio geral da trégua. Um apaziguamento com apólice geral. Não interessa saber quem dá o primeiro passo; o que importa é que o primeiro passo seja dado. Poder-se-ia contradizer os exacerbados com um exacerbamento de “centro” (por assim dizer, sem a literalidade do termo no seu significado político). Mas, pergunta-se, um radicalismo não é sempre um radicalismo, mesmo que se perfile como uma atuação estratégica o propósito de derrotar os radicalismos expoentes?
A semântica é cristalina: um radicalismo é um radicalismo. Um “radical de centro” será refém do seu radicalismo, vergado pelo peso da ignomínia dos exacerbados que se odeiam e prometem uma maré alta de violência. Não é através de um metódico exacerbamento que se derrotam outros exacerbamentos; ele poderá enfraquecer com as investidas conjugadas dos exacerbados de linhagens diferentes. Um chamamento à razão é preferível. A denúncia da demencial espiral de autofagia pode ser o detonador do apaziguamento das hostes inflamadas.
É um método falível. Depende de fatores exteriores à vontade dos promotores das tréguas. Enquanto a temperatura continuar em ebulição, as possibilidades de fazer vingar o princípio geral da trégua são reduzidas. Mas são mais elevadas do que permanecer indiferente à coreografia dos loucos.
12.6.20
Obras públicas (short stories #222)
Certificado de habilitações: possuam-se os risos loucos dos loucos antes que um passaporte seja embaraço. As paredes gastas precisam de renovação. Têm vergonha do vento que as beija todos os dias. Esse vento que repõe o salitre que destina as paredes à decadência. É preciso adjudicar a obra. As juras de perfeição esbarram na maresia que adorna a manhã. É mesmo tempo das obras. Públicas obras: ficam à mostra dos olhares comuns, o estaleiro onde exercem os operários com os corpos tisnados pelos dias soalheiros. Os materiais amontoados no alpendre experimentam o odor dos elementos. Experimentam o mar que não está longe, no pressentimento do tempo futuro. Do estaleiro, um palco assimétrico. Os operários não perdem pitada do que se passa na rua. De quem passa na rua. Os transeuntes não reparam que um estaleiro está montado e que as obras estão em curso. Marx teria razão? (Se não lhe dissessem que os operários das obras ganham à hora mais do que um quadro médio – a teoria da classe média já conheceu melhores dias.) Os cães passeados por seus tutores prestam mais atenção à movimentação do estaleiro. São mais sensíveis aos ruídos fabris, ao entrelaçar metálico das matérias-primas, à vozearia dos operários. A obra é pública porque ao caiar as paredes torna-as nuas ao olhar dos passeantes. Paradoxalmente pública: porque ninguém repara nas públicas obras que se expõem. Nem o contratante, que só vai aparecer no último dia. Quando a obra for entregue e o contratante a passar de fio a pavio para saber se foi entregue com precisão. Depois dos estaleiros desarmados, fica a nudez das paredes que resplandecem outra vez. Como quando eram novas. Sem medo se serem esmurradas pelo vento hostil que arroteia as sementes da maresia. Outra vez à espera de sedimentarem os sinais evidentes de uma decadência vagarosa. Até que seja tempo de obras públicas. Outra vez.