31.7.20

Dogma em sentido contrário

Falco, “Der Kommissar”, in https://www.youtube.com/watch?v=8-bgiiTxhzM

Andavam à procura de apeadeiro para a nave espacial. Antes que ficasse sem combustível e se despenhasse no céu púrpura em que se consumiam os medos das pessoas. É preciso reconhecer que os ventos não estavam de feição. E as letras miudinhas estavam fora do alcance, só embalsamadas pelos irredutíveis arquivistas do reino. 

Não desistiam da função. Ninguém lhes tinha encomendado a empreitada. Mesmo assim, juraram à medula não capitular antes que a nave espacial estivesse em mãos seguras num apeadeiro razoável. Às vezes, as missões imponderáveis assaltam a lucidez e há pouco que se possa fazer para combater a anestesia que se enquista. Diz-se, a este propósito, que os empenhados na missão inesperada são vítimas da vontade sem inventário. Da vontade que não reconhecem como sua. Mas esses eram meandros que não importavam se não aos eruditos que têm a especulação como preço de vida.

Não se sabia de onde viera a nave espacial. Nos tempos da guerra fria, o desvio de rota podia conter segundas intenções. Agora que a época glacial deixou de adjetivar a guerra, e que um simulacro de paz se abateu sobre as costuras do mundo, ninguém sabia o que levara a nave espacial a este esconderijo: assim como assim, a paisagem vista da estratosfera deve ser mais bucólica do que qualquer canto arrancado a esta terra imersa no tempo parado (por mais que exaltados cultores da idiossincrasia pátria jurem a pés juntos que não há lugar com paisagens mais belas). 

Não se sabia se os astronautas estavam vivos. A nave adejava vagarosamente sobre o céu da cidade, como se estivesse num estertor, ou à procura de lugar seguro para aterrar. As pessoas, atentas à diligência, só não sabiam se era o piloto automático ou os astronautas que se debatiam na deferência aos cidadãos. Como havia urgência no desenredar do assunto, um grupo de peritos em coisas cósmicas teve a iniciativa de criar um gabinete de crise, sem o beneplácito do governo (este entretido nos arrufos e sinuosidades da paroquial política e entretido com a diplomacia bufa). Eram uns cientistas da melhor cepa, ajuramentados no cânone do rigor, que queriam arranjar apeadeiro seguro para a nave espacial e salvá-la da catástrofe. O dono do engenho (ainda por determinar) haveria de agradecer o empenho dos ilustres cientistas e a nação ficaria muito bem na fotografia exposta ao mundo inteiro – coisa que não é de somenos importância, que os súbditos aceitam que o elogio internacional se sobreponha às vergonhas caseiras.

Estava difícil entrar nos circuitos internos da nave espacial. Valeram uns peritos em pirataria de computadores (por razões de proteção de dados pessoais, obviamente não identificados) que alcançaram o desiderato depois de bens alimentados. No dia fulcral, a nave fez-se em segurança ao apeadeiro. A imagem que vem à memória, depois de um buraco negro no tempo (que não fornece respostas às muitas perguntas que se poderiam disputar), é a condecoração dos heroicos cientistas no lugar emblemático da democracia do país que tutelava a nave espacial.

Obviamente, os piratas informáticos receberam a comenda por interposta pessoa.

30.7.20

Desafio o desafio a ser desafiado (esgrima)


Prescindo da máscara. Prescindo do arnês. Prescindo da espada, mesmo sabendo que à esgrima se deita o corpo em resposta ao desafio desalfandegado. Prescindo de esconderijo. Não é bravura demencial, ou ato impensado de coragem narcísica. Prescindo de ajudas exteriores, conspirações divinas, jogos com emolumentos de fingimento – só preciso das minhas mãos.

Deixo vir o desafio de frente, com o peito aberto que diz ao desafio que o vai desafiar com a humildade de quem não é louco. Embebido na prosápia própria de quem se constitui desafio, o desafio não saberá que ninguém o protege de um desafio. É o desafio ao desafio. A viagem de quem não se esconde do desafio e adivinha a displicência inata ao desafio. E se o desafio for virado do avesso com a apostilha de um desafio que lhe seja desafio?

Para o livro de atas vertem-se os termos do propósito: desafio o desafio a ser desafiado, para entender se, uma vez desafiado, o desafio derrota o desafio que se lhe coloca. Não é obliteração de responsabilidades – dir-se-ia, apenas um ardil meu para escapar do desafio exposto pelo desafio, devolvendo-o a um desafio inventado à pressa só para ao desafio original não ser exposto. Diria, em minha defesa: é um exercício propedêutico, para apurar se o desafio é temível ou se vem a sua fragilidade ocultada por uma camada de verniz que o esconde da sua autêntica linhagem. 

(Podia acrescentar, em abono da legítima identificação de propósitos: o exercício propedêutico a que o desafio seria submetido pode enfraquecê-lo. Ao esbarrar no seu próprio desafio interior, o desafio consumir-se-ia, exangue. Observaria o desafio em ação, estudando as suas cartadas.)

Depois de ser testemunha do desafio desafiado pelo seu interior desafio, estaria preparado para o desafio. Preparado a empunhar as armas que fossem necessárias, esgrimindo sem armas que não fossem as que de mim se arvorassem réplicas necessárias. Não seria sabedor do resultado do pleito. Ninguém ousa a esgrima com um oráculo entre mãos. O desafio que se soergue sobre todos os desafios é o de não haver pressentimento válido. Por dentro do desafio, torna-se maior o desafio da indeterminação. Da mesma forma que o desafio era desafiado a lidar com o seu próprio desafio, o desafio em si daria em ignição um desafio prévio. 

Ficaríamos empatados, eu e o desafio, num palimpsesto de desafios.

The Blinders, “Black Glass”, in https://www.youtube.com/watch?v=_vzzrppleDs&frags=pl%2Cwn

29.7.20

O xadrez cego


No marmoreado do chão, uma espécie de piquenique dos loucos: os dedos ávidos ensaiam movimentos com as peças que se congeminam, dilacerando o silêncio que não foi convidado. O vento tardio empresta um vestígio de drama, apesar de os convivas continuarem emparedados no silêncio. As peças movem-se, ao acaso, no xadrez que se convencionou não obedecer a regras.

No chão marmoreado valem as desregras avalizadas. O primeiro esboço de procedimento é imediatamente desmentido. E nem é preciso violar o silêncio sepulcral: os olhares ríspidos contam como negação veemente da tentativa de regras. As peças movem-se com o pergaminho da sua liberdade; é como se tivessem vontade própria, apesar de comandadas pelos dedos imprevidentes dos convivas. 

Se lhes perguntassem, diriam não saber ao que tinham vindo. Diriam não saber como tinham chegado àquela clareira da floresta onde o chão era feito de um mármore intransigente. Talvez tivessem sido enfeitiçados, talvez uma impercetível picada no bolbo da orelha, a letargia a fazer efeito sem demora. Foram convocados sem convocatória. Eram apenas passageiros de um sonho alheio, manobrados nos interstícios de ruas aveludadas pelo destempo ilógico do paradeiro de quem tutelava o sonho. O jogo tinha semelhanças com o xadrez, descontando o chão marmoreado que não era um simulacro do tabuleiro onde se entretece o xadrez, as peças resgatadas a uma palete onde tinham representação todas as cores do arco-íris e as desregras caucionadas.

Alguém ergueu a voz, fazendo estilhaçar o chão marmoreado. Afinal, todo aquele mármore era uma fina camada de verniz deitada sobre um chão baldio. Os outros não reagiram à voz. Continuavam mergulhados no silêncio epistolar. A voz desfiava o silêncio instituído, enquanto os dedos prescientes continuavam a mover as peças do xadrez. O provocador queria dizer algo, mas a voz balbuciava umas sílabas que não desenhavam palavras inteligíveis. Os outros só queriam continuar o jogo, obedientemente seguindo as desregras. O silêncio não foi derrotado, nem por causa dos melhores esforços do provocador. Talvez quisesse dizer que não podiam continuar reféns do silêncio, que os Homens foram feitos para a fala. Talvez quisesse apenas advertir que mais à frente havia outro apeadeiro onde um jogo mais apetecível os esperava. 

Não lhe deram ouvidos. Disfarçaram surdez, só para rimar com o silêncio tangível. Se calhar, o apeadeiro mais à frente era um lugar contumaz onde as regras seriam repostas. 

Lianne La Havas, “Weird Fishes”, in https://www.youtube.com/watch?v=LdbHO_KhCig

28.7.20

Desflorestação (aforismo)


No guarda-chuva, depois de uma tarde chuvosa, as gotas retidas como se fossem um exército de compaixão, à espera de se evaporarem. Era de persuasão que se falava, a afronta já entrevada por inutilidade com patente selada. As pessoas falavam de êxito, e eu perguntava se elas sabiam conjugar a palavra felicidade. Palavra que rima com quimera, uma metáfora constante que se enreda nos labirintos em que nos deixamos enredar, dando-nos gratuitamente ao supérfluo, na convicção estrénua de que as distrações o não são.

Podia ser que os dias repetitivos desmatassem o verniz que embacia a genuína linhagem. Em vez de um arvoredo inexpugnável, matriz de uma idílica floresta, haveria um largo planalto ladrilhado pela aridez. Os penhores do desenraizamento postulam a ascese, exigem uma desconstrução completa. Como se tudo tivesse que ser liquefeito numa constelação difusa de sonhos e pesadelos, ficando à espera de um aforismo certo que fosse a sinopse fundadora da alvorada em espera. Contrariando os cânones estabelecidos, a desflorestação era imperativa.

Às vezes, impetrava-se uma erupção vulcânica, a lava espalhando-se pelo todo visível. Quase como se fosse possível caiar as paredes para esquecer o pano de fundo que delas se fazia cenário. Por respeito aos metódicos construtores do edificado, não se traduzia o desejo para não ser levada a pleito acusação de crimes sem defesa possível. Há quem prefira perseverar no esgotado sistema por onde circula o sangue atormentado. Há quem se entregue, sem remissão, ao tabuleiro onde se enquistam as peças exauridas de um jogo pútrido. Preferem conservar o património estabelecido, apenas porque é património e é estabelecido, recusando todas as interrogações que possam acossar a imagem entronizada. Presos a aforismos caducos, reféns de uma inércia que condescende com a mesquinhez dos espíritos. Mortos, sem o saberem.

O deserto povoado pela desflorestação não é intransigente. Pode ser espartano, austero nas palavras debitadas, um quadro de cores desbotadas. Pode desmentir os aforismos consensualizados – mas quem nunca esbarrou numa página à espera de viragem? Quem nunca se cansou do tempo sempre semelhante? Esta era uma desflorestação que cuidava de assistir o parto que deita a vida no acorde da reinvenção. Como era o caso das paredes caiadas, a alvura a disfarçar toda a podridão acastelada no seu avesso.

Poolside, “Getting There From Here”, in https://www.youtube.com/watch?v=fw9vdNjqBjM

27.7.20

A pistola do rafeiro


Era um coldre podre, com buracos por onde podiam passar espadas de maior dimensão. Ele não se importava. Dele se dizia ser um pouco como um pária, mas ele não tinha ido ao dicionário ver o significado de “pária”. Os vestígios de boçalidade não ficam imersos numa cortina de fumo, onde possivelmente o pior de uma pessoa fique à margem da observação alheia. Ele também não sabia disso – e se lhe fosse dado a saber, não se importaria.

Não se podia dizer que era a desconfiança que dava o mote ao modo intempestivo e desagradável como falava com os outros. Aprendera a ser assim: uns pais agrestes, secos na fala, incapazes do menor sinal de afeto entre eles (e menos se diga deles para a prole), uns irmãos que tivera de tomar como lídimos inimigos, o trauma da escola, as amizades furtivas que nunca fizeram jus ao conceito de amizade, o interminável rol de contratempos, entre bebida, drogas, prisão, desamores, aleivosias várias que provavam a estultícia da amizade, de como não era possível confiar nas pessoas. Como ele sabia disso! Dera por si, e não poucas vezes, a admitir que se fosse outra pessoa, essa pessoa não confiaria nele. 

Não havia dia que não trouxesse por companhia uma pistola que comprara a um cigano que lhe prometera ser um negócio de ocasião. Como já se adivinhou, não era portador de licença de arma, que isso das leis sempre fora entendido como um luxo da burguesia que se armou até aos dentes com a prosápia da estabilidade e da ordem. Nunca usara a arma. No ecossistema que frequentava, os outros sabiam que não saía de casa sem a companhia da pistola. Dava estatuto; estava convencido que a arma de fogo granjeava o respeito de que, de outro modo, não seria credor.

Um dia, as calças puídas atraiçoaram-no. Do bolso decadente, o bolso esfiapado com a urdidura do tempo, a pistola evaporou-se. Foi numa noite de boémia. As cervejas bebidas já tinham passado da conta e, contava-se em surdina, ele fora protagonista de umas figuras tristes. Não deu conta que a pistola se dissolvera da sua posse, furtivamente escorregadiça pela perna anestesiada abaixo. Logo nessa noite, que uma peleja atiçada pelo destempero da embriaguez convocara a pistola para dirimir o pleito. Quando meteu a mão ao bolso, depois de vitoriosamente (mas antes do tempo) declarar vencida a contenda, confiando na vantagem da pistola, descobriu apenas a pele coberta de pelos que era sinal da perna. De pistola, nada.

Acordou, horas mais tarde, numa marquesa atirada ao acaso nos corredores da urgência do hospital. Sem três dentes e com um punhado de pontos cosidos no sobrolho. Meteu a mão no bolso roto. Nada de pistola. Agora, era apenas o rafeiro com três dentes subtraídos à força e um punhado de pontos pespegados no sobrolho. O pior foi ter perdido a pistola.

Vaiapraia, “Fogo Fera”, in https://www.youtube.com/watch?v=mTtns2P1KcQ

24.7.20

O poder balsâmico de uma vagina


Uma mulher nua, de pernas escandalosamente abertas, parou o avanço da polícia numa manifestação de rua em Portland. A violência foi absolvida pela nudez heurística de uma mulher. Não seria o mesmo efeito se um homem fizesse as vezes da nudez, ostentando um orgulho falicamente masculino: adivinhe-se a investida da polícia, diligente no célere termo do que seria considerado um atentado ao pudor como eufemismo de um ato provocatório, que a exibição da nudez masculina seria um desafio aos seus semelhantes do lado da barricada em que estivessem os polícias.

Ao contrário, perante a nudez feminina posta em termos escandalosos (para os bons costumes, bem entendido), os polícias travaram o ímpeto do que prometia ser uma escalada de violência. Os agentes estavam preparados para responderem à violência dos manifestantes com a violência do poder legítimo. Mas apareceu a mulher nua, em pose lasciva, ou em pose parturiente, com a vagina escancarada à vista dos polícias. Um ato de tanta simplicidade valeu as tréguas. 

O episódio é uma fértil encomenda para a reflexão. Uma mulher nua, sentada com as pernas bem abertas, mostrando-se pelas entranhas, pode conter uma provocação libidinosa a que os polícias responderam com demissão. A evocação sexual, traduzindo um potente ato de pacificação, representa o sexo como poderosa arma de arremesso contra a brutalidade, um temperador dos piores instintos violentos. Os mesmos polícias que não tolerariam a nudez provocatória de um homem em sua fálica exibição recuaram na predisposição para a violência ao serem confrontados com a pose (lasciva ou parturiente) da mulher. Terá sido uma manifestação de respeito pelo poder hedónico do sexo, a mulher ali desnudada e exibindo flagrantemente a vagina como epítome de todas as mulheres que os polícias amaram através do sexo. 

(As más línguas poderiam conspirar, insinuando que a demissão da violência policial teria outra grelha de leitura: a má consciência dos maus amantes a forcá-los à retração do instinto de violência que tinham em ebulição).

A mulher nua, sentada com as pernas bem abertas, em pose parturiente, também pode conter uma simbologia maternal que detonou, no subconsciente dos polícias, a autorrepressão da violência para que vinham industriados. Um homem não agride a sua mãe. Aquela mulher, em pose também entendível como se estivesse a dar à luz, terá causado nos polícias o regresso às origens, quando no ato do nascimento foram extraídos da vagina maternal. A reverberação genesíaca era incompatível com o barril de pólvora que estava quase a ser acendido.

A nudez feminina foi instrumento de restauração da paz em véspera do atear da violência que se pressentia. Desta vez, foi a interpretação que levou vencimento. A História das guerras é prodiga no contrário, em atos selvagens de violação de mulheres pelos exércitos invasores, que consumam a usurpação sexual como instrumento que sela a invasão. Desta vez, em cenário prévio a uma erupção de violência, o desassombro de uma mulher em nudez que tanto pode ser entendida como provocação luxuriosa como evocação do parto, a nudez foi o bálsamo que asfixiou a violência.   

In https://pbs.twimg.com/media/EdQLRy-XYAA0ajR?format=jpg&name=small


23.7.20

Poetas sem fronteiras (short stories #237)


          O efeito das palavras descafeinadas é como abjurar as cores do tempo. Não se esvaziam os armários para deles ficar uma moldura do vazio. Não é desse minimalismo que os poetas são mecenas. O seu peso sobrepõe-se à letargia da manhã. Derrotam a cortina baça que fundeia no pensamento e inventariam o amontoado de palavras de que poderá fruir um poema. No sindicato da poesia, os poetas não têm nacionalidade. Não obedecem às fronteiras (mesmo quando as fronteiras são imperativas). Há uma semelhança notável com os capitais: tal como estes, os poemas são entes insubordinados, sem que ninguém os veja transitam entre os países, sem respeito pelas fronteiras. Nasceram para serem rebeldes das fronteiras. Como os poemas são a materialização dos poetas (seus fautores), os poetas viajam no vagar intemporal e desprendem-se de pertenças. A única que admitem é o sortilégio das palavras, a sua quimérica matemática. No sindicato da poesia, desenham as estrofes que se candidatam a poesia estabelecida. Servem-se do sangue em ebulição e do compasso da alma. Congeminam-se no altar sublime onde tornam a medula em página arrebatada. Não admitem fórmulas usadas, nem convenções que devem ser deixadas ao cuidado da poeira dos manuais. Porque se sobrepõem às fronteiras, os poetas só admitem o hino da liberdade. Por isso é que são poetas. Não esperem deles que sejam procuradores de outros. Não esperem que aceitem comendas: não podem admitir um serviço à comunidade, o que os deixaria embebidos em responsabilidades de representação que desprezam. Os poetas sem fronteiras acusam o implícito dever de legarem as palavras às amplas latitudes despojadas de idiomas. Atiram-nas ao ar belo e esperam que irriguem ao acaso como se chuva fossem. Os poetas têm de escrever num idioma, é certo. O idioma não é sinal de pertença. É um acaso, ou um hábito sedimentado. Se os poetas não têm fronteiras, por que seriam reféns de um idioma?

Groove Armada, “Superstylin’” (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=gEKUKDsw0JU

22.7.20

Serenata, há chuva


Dionísio olhava demoradamente para o gargalo da garrafa, à falta de vinho, que se esgotara. “Se ao menos houvesse uma donzela por quem pudesse fazer uma serenata...”, suspirava, melancólico. A Dionísio não era dado a lembrar que não sabia ler uma pauta de música e a voz se prestava a qualquer função menos ao canto. Não fosse a embriaguez para compensar a frustração de uma vida errante, Dionísio teria a compensação do desamor como frémito para a serenata esboçada em pensamentos.

Ainda por cima, chovia. Dionísio estava encharcado, mas não dava conta. Era a anestesia etílica – afinal, o que demandava para fruir as desavenças com a vida, os maus encontros que foram estiolando a cartografia da sua existência. “Podia fazer uma serenata!”, exclamou no pesar do estado lisérgico. Houvesse quem lhe segredasse que a serenata exige uma diva. E, ainda por cima, chovia. Mandam os costumes que não se façam serenatas à chuva, não fiquem arruinados os instrumentos e engripados os tenores. 

Dionísio ripostou (queria provar, num acesso iracundo de quem quer ser espetador de si mesmo, que não estava ébrio e tinha condições para o raciocínio linear): “mas há aquele filme icónico dos anos cinquenta, notável pela cena da serenata à chuva.” No termo da frase homérica, esvaziou-se o êxtase. Não percebera ao certo a proclamação. Chovia, era certo. Mas nem tinha propensão para a música, nem uma mão cheia de guitarristas a tiracolo, nem a voz era melíflua. E ficou por aqui no diagnóstico. Intencionalmente. Não quis concluir o raciocínio com o episódio em falta: não há serenata sem diva para homenagear (ou cortejar) e ele não tinha uma diva a preceito.

“Não vem daí grande mal ao mundo!”, desviou-se do sentido apoplético. “Há chuva, há serenata. Tenho dito. Te-nho di-to!” Assim como assim, a imagem de marca era o tal filme icónico dos anos cinquenta: uma serenata à chuva. Se há serenata, há chuva. E Dionísio tanto se enovelou no jogo de palavras que conseguiu apagar o desamor contínuo do mapa das angústias.

Iguana Garcia, “Horas Vagas”, in https://www.youtube.com/watch?v=5ym_nhLxfjA

21.7.20

A teoria do boomerang


A crença na reposição do equilíbrio depois de um mal cometido é o selo da ingenuidade. Uma repartição cósmica da justiça cuidará de repor as coisas no seu estado anterior à cominação da iniquidade – acredita-se. E acredita-se que será deus, ou o sortilégio do destino, ou outra qualquer intermediação supra sensorial, ou apenas a justiça dos homens, a devolver a justiça. É cá que se fazem e é cá que se pagam. Esquecendo o poder do acaso. Muitas vezes, o regresso à casa da partida só acontece por uma coincidência que se chama acaso.

Primeiro, esta crença é a radiografia da ingenuidade que não quadra com as feições do real. Quantas vezes as injustiças são repostas? Só um seguidor de um otimismo antropológico inverificável pode afirmar que há uma qualquer modalidade de justiça, dos homens ou fora do seu perímetro, que cuide sistematicamente de cancelar os efeitos de uma injustiça. O mundo que conhecemos é a representação plúmbea em que se sedimentam diversas camadas de injustiça, com os esforços da justiça modesta para reparar os seus males. A antítese do lugar idílico onde vegetam os otimistas. É longo o desfile de gente macerada por injustiças sem que o tempo que corre seja o lagar onde se prepara o aperfeiçoamento da justiça.

Segundo, mesmo que haja a reposição de injustiças, com um possível regresso à casa da partida na véspera da injustiça, é suficiente para compensar a vítima? Enquanto se manteve a injustiça, a vítima foi por ela dilacerada. Acumulou dias, semanas, meses, ou mesmo anos de sofrimento. Por mais que se corrijam as injustiças, é criteriosa a compensação das vítimas? Como medir a sua dor, as perdas acertadas pela injustiça? O boomerang que se preconize é um critério rigoroso de compensação? 

Terceiro, a reparação das vítimas das injustiças é como abrir uma caixa de Pandora por se tratar de um sentimento invadido pela subjetividade. O sofrimento é variável de pessoa para pessoa. Como o é a dor, insuscetível de ser submetida a uma grelha de análise pontuada pela objetividade. O boomerang em ação, modalidade a preceito de personagens que se autoinvestem no poder de justiceiros, pode ser uma contrariedade para as vítimas de injustiças que se quer compensar. Algum justiceiro terá pensado que só a lembrança da injustiça pode ser outra injustiça imposta à sua vítima? E que corrigi-la, insistindo na compensação, pode ser outra injustiça a abater-se sobre a mesma pessoa?

O boomerang da justiça que se afeiçoa para despojar injustiças é errático. A justiça fica a perder para a injustiça. Esta é uma angústia com que se aprende a viver.

Happy Mondays, “Loose Fit”, in https://www.youtube.com/watch?v=xfF4k6TxFno

20.7.20

A lua não está à venda (short stories #236)

Echo and the Bunnymen, “The Killing Moon”, in https://www.youtube.com/watch?v=LWz0JC7afNQ

          Não queiram desencaminhar a lua extrovertida. O turno dos artesãos de atalaia, os que tencionam comprar a lua, é irrisório. Deviam saber que a lua é extra-proprietária. Inexpropriável. Combinem-se as forças silenciosas para travar o soez impulso dos que querem comprar a lua. Diga-se-lhes: a lua não está à venda; deixem-na caiar a noite; deixem-na ser a substância que invade a inspiração dos poetas; deixem-na ser a candeia que se caldeia com a noite encorpada. Quem quer comprar a lua? O que querem fazer com ela? Encerrá-la num biombo, cobrando franquia aos súbditos acometidos pela saudade do luar? Retirá-la do céu, alegando que o luar é iridescente e fabrica mitos que distraem as pessoas da vocação produtiva? Nada disso interessa. Os peões de uma qualquer conspiração devem ser demovidos do negócio. Não há negócio com a lua. Em última instância, expropriem-se os que teimarem na aquisição da lua. Tire-se-lhes por dentro a medula da personalidade. Não seria por vingança; seria para os convencer, pelo critério do cansaço, que uma vez exangues ter-lhes-ia sido despojada a ideia de serem compradores da lua. A lua, por sua vez, conta com o nosso patrocínio. Conta que sejamos compadres. Uma daquelas causas que angaria uma multidão (selo contemporâneo da intervenção cívica, no amuo da democracia formal). A lua quer continuar a irradiar a sua prodigalidade. Disse-o por sinais, as reverberações do luar detetadas por meticulosos telescópios e depois traduzidas por génios da decifração. A lua quer continuar a ser uma tutela parda de todos nós que não a deixamos órfã quando se torna visível. Digamos, em uníssono e de viva voz, a lua não está à venda. Repetidamente. Digamos, convincentemente, que a lua espera por nós. E os néscios que a querem comprar que sejam advertidos que a lua é um pedaço da sua carne. E que ninguém compra aos outros um pedaço da sua própria carne.  

17.7.20

O que ia a dizer que não é mentira? (Ou: quando julgamos que o eu é centrípeto, afinal o que importa são os outros)


Diriam os entendidos, os entediados com a patogénica modernidade, que a exaltação do ensimesmar descuida a pertença a um grupo. E a pertença grupal é o atestado de sanidade social que despoja o eu de uma centralidade que não lhe é devida. Em argumentação de idêntica cepa, dir-se-á que à entronização da lógica dos direitos (onde os direitos individuais são o Norte) se imputa parte importante do culto do eu.

Todavia, a um eu tão narcísico corresponde uma sua projeção exterior. O eu centrípeto precisa de reconhecimento. Por mais que ensimesme, a esse eu não é suficiente o autorreconhecimento. O eu é seguro de si mesmo; ele é o último bastião do seu próprio reconhecimento. As imagens que de si tem ficam guardadas numa moldura interior, zelosamente cuidada para não se encontrar no abismo que é a sua negação. A prova dos nove está fora de si, no reconhecimento que procura nos outros. Há, nessa medida, a projeção do eu para fora de si. É o lugar onde obtém o reconhecimento que se faz esteio do seu centrípeto lugar.

Neste processo catalítico, os individualistas são um paradoxo de si mesmos. Cuidam meticulosamente de si, como se tudo o resto fosse de si limítrofe, mas não conseguem prosperar no metódico ensimesmar sem o biombo dos outros onde eles são revistados. Os narcisistas só o são enquanto obtiverem respaldo dos outros, o que pode significar um pequeno reduto de pajens ou um numeroso exército de seguidores (dependendo da ambição de quem se ensimesma). Quem transborda o seu eu depende intrinsecamente dos outros. É esta esquizofrenia, porventura não admitida internamente, que os expõe às vicissitudes dos outros. A menos que sejam reclusos do que lhes é exterior (ninguém é eremita), o egocentrismo está ancorado nos outros.

Este é um espelho que desmente as profecias dos vigilantes dos maus tempos que nos consomem. Podemos ser cada vez mais ilhas, mas não somos ilhas isoladas. Somos uma constelação de ilhas intrinsecamente ligadas. Este é o cimento de uma pertença não voluntária, mas contingente. Mas uma pertença, em todo o caso: até os que se consideram ilhas refinadas, ilhas entre ilhas, intuem que o seu reconhecimento depende de outras ilhas. É uma pertença contingente, e oportunista, não genuína.

Nick Cave & the Bad Seeds, “Jubilee Street”, in https://www.youtube.com/watch?v=xCxHvNl9MmQ

16.7.20

Em surdina


As tuas palavras são documentos históricos. Desembaraçam o verbo puído, que se torna a resplandecente versão do dia apetecido. Pelas tuas mãos, as palavras dançam. Não se confundem com o nevoeiro que embacia o entardecer, o nevoeiro a destempo. Não se confundem com os meãos desvios da fala que armadilham o consequente pensar. São belas, as tuas palavras. Em surdina entoadas, contendo em si a clave de sol que as torna musicais.

As tuas palavras tornam-me alma. Agigantam-se no horizonte onde se depõe o meu olhar, em espera pelo ocaso que apenas pressente o dia sequente. Murmuradas ao ouvido, como lauto manjar que se apessoa na vindicação dos amplexos em que somos simbiose. Um traje de gala, poemas falantes sem sede de métrica, candeia que irrompe na escuridão, desfazendo as trevas contra a fina umbria dos pesadelos em que se consomem. Desenhando os deslimites de que somos inventores. Não digas a ninguém. Conservamos a patente no cofre onde se emolduram os segredos. Tanto é o que nos basta.

Em surdina, dizes o que deve ser dito na impureza das horas. Nada, é o que dizemos aos lugares-comuns. Reservamos o melhor de nós para o que importa – e o que importa são os dias todos, inteiros, fundidos no pergaminho luxuoso em que se compõe o fado no esteio de um passado nosso. Contamos os segredos que mais ninguém sabe. Em surdina, não se erga um ouvido intruso e o segredo deixe de o ser. Contamos, numericamente falando, os segredos que já contámos. Como se fossem um sextante das águas que vamos descobrir só nossas.

Não precisamos de atlas. Não precisamos de enciclopédias que ensinem a beber no mirífico destino das palavras. Dizemo-lo sem rodeios, imunes às tergiversações, com a luz embebida no sortilégio da manhã. Às vezes, o silêncio confunde-se com as vozes em surdina. O silêncio é o ersatz da surdina, dispensadas as palavras tonitruantes que agridem a benevolência dos deuses em que se transfiguram as nossas almas. 

Dizemo-lo: em surdina, as palavras ganham pose poética. E sabemos que a poesia é tudo, como conta, em contagem crescente, o uníssono em que nos tornámos. Pois é em surdina que apaziguamos os tornados, desfazemos as trovoadas medonhas a maresia, cuidamos das marés vivas em forma de instalação artística. E traduzimos as iracundas palavras nas estrofes aformoseadas com o verbo selado pelas bocas que se beijam.

The Cure, “Close to Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=BjvfIJstWeg

15.7.20

Um naco da generosidade: em dia de aniversário, as empresas oferecem prendas aos clientes


(Excurso – ingénuo ou irónico, fica ao critério do leitor – sobre a ontologia da produção)

Quando são criadas, as empresas querem vender o máximo de mercadorias. Só o conseguem se a mercadoria tiver qualidade e se arregimentarem uma clientela disposta a pagar o preço. A qualidade da mercadoria deve ser merecedora do preço. Quando são criadas pelos seus fundadores, as empresas querem ter lucro. Sem lucro não sobrevivem, não conseguindo pagar salários (e o salário do proprietário, que é o lucro). As empresas e quem lhes compra mercadoria são interdependentes.

A narrativa dominante entre os lúcidos analistas do tempo hodierno é que somos, na qualidade de consumidores, enfeitiçados pela lógica do mercado. As empresas mais requintadas servem-se de ardis para nos tornarmos reféns do consumismo (uma das piores maleitas deste capitalismo que desalma as pessoas). As tentações cercam-nos por todos os lados. Se não formos autónomos e não soubermos resistir às tentações, empenhamo-nos no vício que as empresas e suas mercadorias instalam na nossa vida. Elas querem que sejamos mais e mais consumidores. Que gastemos mais dinheiro na compra de mercadorias. Que engrossemos o lucro (pornográfico, diz-se) das empresas que só se interessam por pessoas enquanto forem consumidores.

Às vezes, é possível virar esta narrativa dominante do avesso. Por exemplo: em dia de aniversário, as empresas distribuem prendas pelos consumidores que fizerem o obséquio de as frequentar nesse exato dia. São os descontos “extraordinários”, o “pague um e leve dois (numa gama selecionada de produtos)”, o “compre hoje e comece a pagar daqui a x tempo”, o “compre hoje, nós pagamos o IVA”, etc. Em dia de aniversário, as empresas não só praticam estas liberalidades como pagam a publicidade que leva a mensagem ao destinatário.

Ora, isto é o contrário das convenções (e da análise dos lúcidos analistas do tempo hodierno). Estamos habituados, em dia de aniversário, a receber presentes de familiares e amigos. As empresas viram o uso do avesso: são elas que oferecem prendas aos clientes. Dirão os desconfiados, habitualmente de pé atrás com as liberalidades dos timoneiros do capitalismo, que as empresas não dão ponto sem nó: esta generosidade fora da agenda é um estratagema para angariar clientela; ou, na pior das hipóteses, para trazer mais clientela às lojas no dia de aniversário, fazendo com que o aumento da receita mais do compense a generosidade ostentada nas campanhas de aniversário.

Seja como for, o uso fica do avesso quando é uma empresa a celebrar o aniversário. Qual seja a intenção que atrás se esconde, ou se a generosidade exposta é apenas um biombo, é do domínio da especulação. A menos que se pergunte diretamente aos empresários e eles respondam com a verdade. 

(E a verdade esperada por quem perguntar, o que torna a dilucidação mais complexa – e subjetiva.)

The Sisters of Mercy, “This Corrosion”, in https://www.youtube.com/watch?v=HIMdpruORPE

14.7.20

Tradução simultânea (short stories #235)


          Incidente da instância: o vocabulário desafina, ou a gramática não quadra com a fala. É preciso tradução simultânea. Pese embora falem o mesmo idioma. A comunicação estilhaça-se num gume de desentendimento. As palavras são devidamente silabadas, para não se perderem pelo caminho. Elas são devidamente encaixadas pela audição, que não está diminuída. Há no processo um labirinto que se torna um embaraço. A decifração das palavras em seu encadeamento é um logro. O que é entendido não corresponde ao somatório de palavras debitadas pelo emissor. Menos mal andarão as coisas se o recetor tiver a humildade de declarar, ato contínuo, não ter assimilado o sentido do proclamado. Ou se, não o dizendo de viva voz, o deixar vir ao de cima com um esgar de desentendimento que não consegue reprimir. Os veios da fala articulam-se em diferentes ondas de entendimento. É mesmo necessária a tradução simultânea. Antes que as vírgulas a destempo povoem a frase, à medida de cada hesitação que funciona como uma trombose à inteligibilidade. O idioma é o mesmo, mas a tradução simultânea não deixa de ser património exigível. Não se dirá “é melhor fazer um desenho”. A expressão é desdenhativa, como se fosse uma injúria à inteligência do recetor. Dir-se-á o seu eufemismo: tradução simultânea. Porque a capacidade hermenêutica presta-se à subjetividade. Não é desprimor. Quando se não alcança o sentido do proclamado, o tira-teimas é no interesse do recetor. (A menos que o dito pelo emissor seja enfadonho e o recetor esteja sitiado por uma voluntária letargia.) Não amesquinha ninguém. Às vezes, os melhores professores têm de explicar por outras palavras. A tradução simultânea é para que não fiquem migalhas a afear o texto dito – como se as migalhas em cima de uma folha de papel fossem limalhas ásperas que agridem o pensamento. A tradução simultânea será uma proeza se desfizer os nós que embaciavam o entendimento.

Sigur Rós, “Hoppípolla” (live Heima), in https://www.youtube.com/watch?v=KbPWi1gshzI

13.7.20

O oposto do sorriso (short stories #234)


          Não baixo a guarda. Tenho a impressão que todos os rostos são desnatados. Não sei porque o meu é diferente. Arrumo a alma na tonitruante intempérie que tem dia marcado. Tirava-me do sério – para usar expressão popularizada – e seguia pela rua sem travar conhecimento com o fado. Se ao menos houvesse um anjo caído, nem que fosse com as asas fraturadas (sinal de decadência), podia ser a avença dos miosótis que orquestram a beleza circundante. Mas temo ser apenas um enredo, ou uma fábula sem animais por figurantes, uma vírgula à espera de sítio. Será de estranhar que o rosto se coalhe no oposto do sorriso? Vejo as pessoas, como se organizam quando são estranhas. Como a boçalidade, a desconfiança larvar, são mecanismos de defesa (isto sendo generoso, pois se for inato agrava o diagnóstico). Vejo como outras disfarçam o estatuto com sorrisos. Mas são sorrisos que se escondem numa máscara onde os corrimões do fingimento são biombo necessário. Não invoquem os sacerdotes da positividade constante, que esses me parecem tão ardilosos como os que se escondem atrás da boçalidade impenetrável. Nos degraus onde se cimenta um não-saber estar, as almas fundem-se na contingência de um fundo fiorde. Deitam as mãos às paredes íngremes, mas o musgo dominante atira-as constantemente para as águas álgidas. A menos que seja um pesadelo e as cortinas do medo se dissipem no estertor da hipotermia. Ainda se há de levantar o dia sem sombras, de modo a que fiquem translúcidos os rostos à medida de um corpo albino exposto à virulência da luz solar. De que adianta mostrar o que se não tem? Os esgares são instantes visíveis. Ultrapassam os rostos engenhados que sobem a palco espevitando com as esporas o dorso cansado em que se suporta o teatro inteiro. Não há momentos de lucidez, pois já nem se sabe o que é a lucidez. Os sorrisos, esses, ficam à consideração do acaso.

The Breeders, “Blues at the Acropolis” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bWYnd__VTdM

10.7.20

Esta é a tua cronologia


Não cuides do lastro onde medram os imposturas. Porventura será um criterioso ardil em que exibes a tua generosidade: dirás: é preferível ser fautor dos enganos de mim mesmo do que povoá-los nos outros. Combina-te com o tempo que nunca é madraço. Empurra a poeira do oblívio contra a parede onde se elevam as variegações da manhã. Fresca, a manhã, cobra a serenidade da alma.

O estuário oferece-se ao teu olhar. Estende-se num delta que te transforma em soberano. Pelo menos, em soberano do teu pensar, que é garantia que te basta. As traineiras entram e saem do estuário e sobre elas adeja uma matilha de gaivotas. 

(Nota explicativa ao leitor: o autor tem conhecimento que um bando de gaivotas é um bando, não uma matilha. Que o leitor conceda liberdade criativa ao autor, e que lhe seja autorizado o direito de adulterar uma metáfora. As gaivotas transfiguraram-se. São predadores agressivos, o que justifica o uso da palavra “matilha”.) 

O tempo vai de feição com a corrente do rio, quase impercetível no seu caminho habitual para a embocadura do mar. Esta é a tua cronologia.

Volteias as páginas de uma biografia que parece ser a tua. Depois de uma aturada inspeção, percebes que a biografia não era sobre ti. Procuras entender as diferenças – como naquelas charadas que vêm nos jornais, “descubra as sete diferenças entre os dois desenhos”. Por vezes, reparamos que temos vidas parecidas. Somos cada vez mais um todo quase indistinguível, como se pudéssemos ser perfeitos substitutos. Logo agora que os direitos de personalidade foram deificados. É dos cânones: a teoria não consegue explicar o palco em que pisamos. 

Não ajuramentas nada que seja rima com o porvir. Desses quadrantes não sabes nada que seja penhor de um oráculo, e tu convictamente manténs a negação dos oráculos. Regulas a maresia que perfuma as arestas por onde o corpo se enovela à medida que as expiações rompem o sargaço. Desemaranhas os dedos que estavam reféns do sargaço. Regulas a maresia: e, senhor de um promontório, acertas o relógio pela cadência que a tua vontade determina. Não é ao contrário. Pois esta é a tua cronologia. 

Cage the Elephant, "Social Cues", in https://www.youtube.com/watch?v=2gR9LAI6rZQ

9.7.20

As bocas deixaram de mentir


O esconderijo onde as metáforas se congeminam. Uma marca registada dos tempos que se fizeram diferentes. À medida do fogo que se ateou na inverosímil espessura de uma gramática singular. 

As bocas falam e não se veem. Não se distingue quando mentem ou falam a veracidade. Os empenhados cultores da verdade, habituais penhores da objetividade, acotovelam-se no logro do desassossego. Não podem exercitar a perícia de exegetas da mentira através dos sinais perfilados na geografia das bocas. Dantes, protestavam contra os véus que se abatiam sobre os rostos que cumpriam os preceitos das autoridades canónicas e se escondiam da intrusão dos olhares. Eram contundentes na censura da seletiva ocultação, esgrimindo argumentos (convenientes) que os colocavam em antinomia com a reificada propensão para a desigualdade de géneros. Adestravam-se na contumácia da sua impostura. Agora, o tempo extravagante abateu-se sobre as suas cabeças. O imperativo das circunstâncias terçou a ocultação de todos os rostos, até dos seus. Engoliram a exprobração em seco.

As bocas escondidas escondem mentiras – dir-se-á, em confissão do propedêutico apocalipse que se apoderou do atlas total. Os peregrinos que se importunam com a teoria geral da mitomania não se reconhecem no oposto lugar, aquele onde os espinhos da mentira são desarmados para entronizar a soi-disant verdade. É um comportamento que é todo um programa de intenções. Os que exercem a desconfiança como princípio metódico são os primeiros a serem merecedores de desconfiança. É neles que cairá a máscara que esconde a boca que se alimenta da mentira. Às vezes, os contratempos são heurísticos. 

A boca escondida não se mostra no habitual cortejo que combina sinais opostos. As bocas esventradas por incúria, as bocas impecavelmente apessoadas, as bocas que transitam na expressividade, as bocas imateriais que destilam impassibilidade, as bocas que mentem e as bocas que contam o verídico, as bocas que mentem por contarem verdade como as que são verídicas ao narrarem a mentira, e as bocas de silêncio pegado e as bocas de fala prolixa. Nada disso seria importante se não estivéssemos reféns da excecionalidade que nos acossa. A menos que a exceção se torne regra e em vez da antecâmara do apocalipse passemos a navegar no uso contínuo. Para as bocas deixarem de ser um repositório de estados de espírito e as palavras por si entoadas terem sempre um filtro. 

Mas já não era assim?

Beck, “Colors”, in https://www.youtube.com/watch?v=WRCA_Fo0rWA

8.7.20

O angariador de fundo


Vinte e oito quilómetros e seiscentos metros. A pé. Nunca fazia um mapa dos trajetos que palmilhara. Só depois, na foz da jornada, quando mentalmente desenhava o tracejado pelas ruas da cidade, a ele vinha a imagem mental do entrecruzado que se desenhava no mapa (se o trajeto fosse desenhado num mapa de papel). 

Era assim todos os dias da semana, menos ao fim de semana e às quintas-feiras. (Às quintas-feiras fazia voluntariado numa associação que acolhia crianças com deficiências mentais.) Já perdera a conta aos pares de sapatos gastos nestas demandas que só parecem intermináveis antes de começarem e quando fazia a estatística da distância, na foz da jornada. Durante a função, não perdia o sentido de perseverança sem o qual os gastos esperados se fundiam no vazio. 

Ia de porta em porta em angariação de fundos. Em cada dia, os fundos angariados revertiam para uma organização de caridade diferente. Ele era uma espécie de mecenas que atuava como central que reunia e distribuía generosidade em favor das organizações que precisam da generosidade. Não precisava de agenda para saber a que dia correspondia uma certa organização de beneficência para a qual iria angariar fundos. Não precisava de mnemónicas para explicar os propósitos de cada organização de caridade. Nem desistia à menor contrariedade – e elas eram tantas, como podia atestar pelo número de portas fechadas quase sem justificação, numa flagrante exibição de boçalidade que, no fim de contas, não andava longe do retrato do lugar. 

Não podia falhar uma única porta. Uma porta não visitada podia significar uma oportunidade de financiamento perdida. Todos os cêntimos eram bem-vindos (não se cansava de apregoar, em jeito de agradecimento, sempre que um punhado de moedas era depositado à sua guarda, contra recibo para desconto nos impostos). Em suas deambulações, conhecia a amostra de população visitada como ninguém. Quase podia fazer uma dissertação em sociologia. E outra em psicologia, pois havia vezes (e não eram poucas) que se demorava à porta de alguém que precisava de falar. 

Ao deitar, na solidão do quarto alugado, sabia que não era visitado pela demora do sono. As maratonas diárias não deixavam lugar à insónia, ou a outras apoquentações menores. Como os maratonistas, o fundo era a sua perícia (e a proficiência do discurso e a persuasão). Era um angariador de fundo.


Gorillaz, “19-2000”, in https://www.youtube.com/watch?v=WXR-bCF5dbM

7.7.20

As palavras que não dirás (short stories #233)


The Chemical Brothers, “Let Forever Be”, in https://www.youtube.com/watch?v=s5FyfQDO5g0

          Pacto. Tradição. Complacência. Usura. Fingimento. Habituação. Tumefação. Caverna. Bastião. Curvatura. Sinecura. Lisura. Desmaiado. Alvenaria. Situação. Conservador. E: ilusão. Contrafação. Rodagem. Semelhante. Espada. Corrosão. Ultraje. Bitola. Costura. Combustão. Ataraxia. Venal. Vénia. Espora. Coldre. Bandeira. Hino. E: estipêndio. Bagatela. Subterrâneo. Contado. Luciferino. Desaprovação. Intenção. Confirmação. Terrina. Observação. Promontório. Submissão. Terreno. E ainda: ajuramentado. Dependência. Redução. Amesquinhamento. Fragilidade. Aproveitamento. Dinâmica. Intervalo. Congeminação. Poltrão. Arrependimento. Secura. Rimmel. Apóstrofe. Litania. Companhia. Servidão. Costume. Intriga. Ingenuidade. Estorvo. Coloquial. Pontualidade. Esperança. Tirocínio. Contrabando. Fronteira. Identidade. Arrepio. Fardamento. Castrense. Castrador. Título. Reparação. Algema. Decência. Vilipendiar. Exercício. Ou: exército. Doença. Força. Munições. Teatro. Patente. Carne. Xadrez. Sangue. Países. Oblívio. Parêntesis. Pessoa. Poço. Gratuito. Monstruoso. E: sentença. Razão. Ponderação. Braço. Processo. Disfarce. Negrume. Gongórico. Labirinto. Manobra. Iníquo. E: adiamento. Hesitação. Lúgubre. Despensamento. Estratégia. Medo. Ontem. Lisérgico. Macieza. Certeza. Fortuito. Irrisório. Imodéstia. Alcance. Diuturno. América. Caldeirão. Faraónico. Oportunidade. Desleixo. Rasura. Hipótese. Constrangimento. Obstáculo. Feira. Demência. Ilógico. Pantalha. Holofote. Escala. Remédio. Excelência. Circense. Iodo. Fumarola. Reunião. Arquipélago. Briefing. Tojo. Número. Úbere. Exílio. Salitre. Escombro. Visita. Além de: utente. Músculo. Isolamento. Máscara. Fazenda. Cuidado. Luto. Grinalda. Hermético. Janela. Risada. Cais. Acolchoado. Horário. Nefelibata. Repentismo. Basco. Acontecimento. Vício. Depressa. Esquecimento. Triunvirato. Hospital. E: positividade. Meada. Caudal. Floresta. Contagem. Acelerar. Renda. Festim. Nebulosa. Insónia. Calendário. Tarefa. E despacto.

6.7.20

Gibraltar


Fortaleza. A cúspide acentuada num trono que inventaria os sedimentos da solidão. Não é um mecenato das ilusões que se congemina no húmus da fala recolhida. As ameias são um bálsamo que se aferrolha no vagar do isolamento. Um enclave emancipado da terra totalitária. Refúgio ou condenação.

Justapõem-se os pesares que se atiram contra o timoneiro hasteado. Não se cuida da semântica entremurada, que cultiva as suas herméticas regras. O forte escarpado denuncia o cerco, mas é o objeto mais desejado, por mais que o abjurem, por mais que se oficialize a sua pária condição. Os estamentos não se confirmam, pois não há hierarquias consabidas. Ao manjar diletante soma-se o esquecimento como mnemónica dos mandantes. Humildes, curvam-se perante os tribunos imunes à crispação. Do alto do rochedo isolado, os verbos iconoclastas não chegam a ser cidadela. 

Depois da manhã, quando o estado iracundo dos acossadores atinge o epílogo, as nuvens perdem os esteios. Combinam juras fáceis, os resistentes. Chamam-lhes insubmissos, mas eles preferem a lógica da rebeldia. Não se empenham nem consentem o entardecer do pensamento. Preferem o juízo em causa própria. É o juízo que conhecem. Preferem-no ao pensamento avulso de que não têm conhecimento. Que ninguém os acuse de parcialidade. Não são imunes ao desconhecido. 

Um dia, alguém ofendeu Gibraltar. Queria-o de volta, mas não se cansava de o injuriar. Ajuramentaram-se os trajes de gala para duelo que ficaria imortalizado. Não havia lugar ao erro. O mínimo descuido podia ser fatal. Mesmo assim, de véspera tornaram-se amigos da boémia e cuidaram de se entregar à ebriedade. Dizia-se que era um ritual dos pleiteantes. No dia combinado, Gibraltar não se amestrou ao desejo dos poderosos. Ficou provada a saga do fraco que se faz forte e derrota o que à partida era mais forte.

As fronteiras que desenham o promontório são difíceis de distinguir. Por mais que aspirem beatitude, desconfiam dos eremitas que prometem redenção a troco de dependência. Para ser dessa forma, não era Gibraltar. A deferência não quadra com a linhagem de Gibraltar. O rochedo que se distingue na paisagem. Ou que compõe a marca distintiva da paisagem apetecível. 


The Flaming Lips, “My Religion is You”, in https://www.youtube.com/watch?v=2g8QTpvY5_Y

3.7.20

No pátio, atrás da casa (short stories #232)


          Corre a cortina sobre o vento. Não são algemas o que te prende ao basalto do tempo. Se as ruas emergem como cognomes, não contes com o pastiche das alcáçovas como remédio. Há sempre uma fuga possível. No emaranhado das palavras que se contorcem no medo, um periscópio consegue distinguir a porta da fuga. Chegarás a um lugar ermo. Ninguém por perto. O silêncio será o teu mote. Poderás ser convocado a mergulhar na medula em que se fundem os sentidos. Não temas a demanda, por mais que ela se assemelhe a um abismo. Que o labirinto em que entras não seja uma casa dos horrores. Pois não sabes (a não ser por experiência indireta) o que são horrores. A eles foste poupado e a episódica falta de lucidez não te deixa reconhecer a proeza. Se ao menos os veleiros não fugissem do cais; se ao menos o vento soprasse de feição; se ao menos os mastins da fala não tivessem liberdade de expressão – tu serias domínio próprio, um país por dentro de um despaís. E não serias ufano do conseguido, pois não cuidas de teus méritos como te sobressaltam os deméritos. Podes vociferar contra os deuses, em litania constante que se nega a si própria. (Sempre estranhaste como pode a missão de um ateu ser a negação de deus.) Se procurares com cuidado, encontras um pátio sufragado na parte de trás da casa. Procura, meticulosamente. Assim que o encontrares, e mal notes os frondosos jacarandás que o contornam, saberás de cor as sílabas do poema que julgavas embaciado. Nessa altura, podes regressar e encher a casa com o perfume que os teus olhos exuberantemente exsudam de se terem detido nos jacarandás. A casa ficará inteira. Pronta a ser uma casa mirífica. E tu, o generoso mecenas que podia ser ornamentado com um prémio máximo de arquitetura.


Sixto Rodriguez, “I Wonder” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=Xw-BpTZAFRY

2.7.20

Errático (short stories #231)


          O traumático descoser da madurez do dia: as lentes baças não queriam mais dia de tanto o saberem radioso. É daquelas coisas que se sente quando o bom em excesso se banaliza, perde propriedades. E, contudo, havia muito por fazer. Houvesse tanto dia por percorrer. “Não há problema. Temos mais dia amanhã”, disseste. “Eu sei. É esta prisão do tempo que se precipita sobre mim. Já sabes como é.” À medida dos veios que imprimem cor à paisagem, como se fosse um resgate à monotonia que se exacerba no caudal da extinção. Os dias não são iguais. O sangue não se repete nas veias que conhecem os dias diferentes. Podia-se testar a hipótese da polissemia da identidade, espartilhada por várias identidades – como se houvesse lugar a vários pseudónimos. “Terás a marca registada do caminho errático?”, perguntaste com alguma complacência à mistura. “Não sei. Não é consumição que sirva de combustível. Sou assim e aprendi a sê-lo.” O lado contrário da moeda espera pelo modo useiro de ver as coisas. Às vezes, os olhos desaprendem o que poderiam aproveitar se tivessem cuidado, se não se apressassem na aridez da paisagem habitual. É o estigma do indígena: acaba por desconhecer o lugar a que diz pertencer. São avulsos os modos de que se compõe o dia. Não se espere de uma véspera aquilo que se tem como provável no dia que vem a seguir. Um pressentimento não passa disso mesmo. Se os vulcões e os sismos se fizessem anunciar, haveria menos vítimas? Ninguém sabe. Não cuidemos das impossibilidades. Cuidemos do lugar presente sem ter por presente o lugar que será vindouro. Pode-se ser nómada sem deixar de ser sedentário. As cidades despojam-se de vento para a extinção dos impostores. Às vezes (talvez muitas vezes), os impostores são os que reivindicam para si o domínio do verídico.


Iggy Pop, “Candy”, in https://www.youtube.com/watch?v=6bLOjmY--TA

1.7.20

Ao arrepio das boas maneiras (short stories #230)


         Transformavas-te na tua própria improcedência: confirmava-se que não foras feito para a convivência social. Os maneirismos fazem esboçar um esgar de desdém. Não sabes para que existem “usos e convenções” se eles são abundantemente despatrulhados. Admites um paradoxo: consomem-te os ninjas que se julgam acima das leis, mas os zelosos mastins dos “bons usos e costumes” levam-te à exasperação. Andas em sinal contrário da maré. Se um estroina egocêntrico espezinha as regras, fazes o possível para o contrariar (sabendo que contribuis para a reposição da legalidade, algo que faz estremecer a tua ossatura misantropa). Se um pastor da normalidade te importuna, aos costumes dizes nada (mesmo sabendo que te alistas no feudo dos estroinas egocêntricos que espezinham as leis). Já te habituaste a não transigir com o assédio da consciência. Eram frequentes os murmúrios que transtornavam o sono. Ela reprendia-te pela volubilidade e acusava-te de incoerência. Já foi tempo que esse era dos piores libelos que sobre ti podiam pender. Hoje, n ão. Já passaste (e com distinção) o tirocínio do amestramento da consciência. Hoje, não patrocinas a vilegiatura dos apessoados da coerência. A humanidade nunca mais aprende com a sua fragilidade irremediável. A tua posição é em virtude do vento que sopra e de como os sentidos travam os combates interiores. Agora já não estás empenhado à consciência. Era algo que te incomodava. Como era possível alguém ser um palimpsesto de si mesmo? Como era possível ceder ao império da consciência, como se ela fosse a colonizadora implacável da vontade? Resolveste os assuntos pendentes. Determinaste que não serias refém de ato algum que comandasse a vontade. Quando fosse preciso, serias rebelde em causa contra as boas maneiras. E serias um sedentário seguidor das boas maneiras, de outras vezes. Não querias espartilhos. E a rebeldia metódica contra as boas maneiras era um espartilho. Mas sobrava uma derradeira interrogação: a vontade não é um espelho da consciência?


Lloyd Cole and the Commotions, “Rattlesnake”, in https://www.youtube.com/watch?v=gSc46sEZdl4