As roupas rasgadas. As lágrimas estugadas. Os lamentos improfícuos. Um altar sem deus para venerar. Um nome que se arrepende. A última súplica, antes da convulsão da lua. A espada embainhada no estertor da noite. O abismo sem marca de água. Os dedos quentes que desenham os mares em sobressalto. Os papeis amarrotados deixados ao acaso como destroços da insignificância. O itinerário corrompido pela alma sem fundo. O sangue em convulsão. Um navio que parece fantasma, oferecendo ao rio o seu caudal. A pele caiada. O chamamento dos novos antes que venha o entardecer. A voz que não emudece. O estirador onde se compõe o tempo. A tempestade poética. As ruas sem gente. O móvel que ganha poeira. Os lençóis quiméricos. Os corpos entrelaçados. O tear onde se desembaraça a angústia. As neves eternas, inacessíveis. As leis sem precedência. O amor-próprio, inconsequente. As imagens recorrentes no pedestal que se afunda no precipício. Deuses sem nome e paradeiro. O vulcão aceso. A formidável congeminação do pensamento, imparável. O voo dos iconoclastas que se perdem na indigência. A matilha que atravessa a floresta à procura de abrigo. O olhar sentido enquanto as palavras se arrastam no torpor da cidade. As mãos, outra vez as mãos, na moldura perfeita. A memória futura, desligada do medo. Os nomes esquecidos. Os rostos esquecidos. As palavras que tiveram palco. As juras desarrumadas. O penhor da honestidade contra o sobressalto interior que desavença a mentira. Um infinito que continua incógnito. O uivar de lobos famintos que habitam as cumeadas. As legendas que traduzem um rosto impassível. O corpo outro, frio nos despojos da noite. O vinho, em sagração. O improvável contumaz. A fuga sem causa. O timoneiro sem séquito. O adiamento, até ontem. O avesso da severidade. Um nome em forma de gentileza. A revogação. Do futuro.
26.2.21
Revogação (short stories #301)
25.2.21
Zona demarcada
Meço o chão que me dá esteio. Procuro o húmus escondido sob as capas superficiais. A geografia da alma não se esconde dos contratempos que a esculpem. Nas raízes dos dedos, até as árvores centenárias são pequenas. Um esboço de alma fortificada tutela uma razão a que se não oferecem razões.
Descarnado, sou o peito aberto que se entrega ao escrutínio. Não diria ser pago por um abismo, que de outras contrafações ninguém está a salvo. Vejo-me por fora de mim. É como se estivesse deitado num sofá e eu, ao ver-me por fora de mim, não soubesse quem estou a ver. Uma sensação de estranheza a percorrer o corpo do eu-observador, enquanto o eu-observado, desarmado, não se apercebe da conspícua observação. O dilema não se resolve com uma paga simbólica, nem com conspirativa corrupção. Talvez só sejamos plenitude quando formos perenemente observadores exteriores do nós mesmos.
Não desisto. Agarro o vento com as duas mãos, com toda a força, como se fosse o meu leme. Fico à espera que os poros se tinjam com o perfume do tempo e que esse perfume não seja uma tautologia. Não é o desalfandegar do futuro que procuro. Apenas quero que o vento me diga quem sou, se é que ando à procura de o saber; pergunto ao vento se preciso de tamanha demanda: não parece caso para tanto (responde o vento). Mesmo nos labirintos onde temos a despertença por companhia, há um mapa escondido no magma que deixa acesa a candeia necessária. A prudência desaconselha o ensimesmar sempre que resulte no culto da personalidade. Pois não há nada para cultivar, neste respeito. A fermentação já teve o seu tempo. O ensimesmar é a orfandade do eu, de um eu impróprio para consumo.
Descarnado, observador exterior do eu que sou, vejo na tela dos sonhos a irradiação de um santuário sem regras, um mar arroteado sem instrumentos náuticos, as estrofes desembaciadas no fulgor da manhã, a arrumação do caos numa constelação fértil, a desautorização do verbo corrente a favor das sílabas vagarosas debruadas a ouro. Vejo um espetáculo admirável, indescritível, o indeferimento do tempo impróprio que nos sitia.
Vejo, porventura, a zona demarcada sob os meus pés, no chão que meço como esteio.
24.2.21
O tesouro dos loucos
Do transporte da fortuna, um tesouro que se furta aos dias selvagens. É o tesouro dos loucos – dizem, com desprezo. Um tesouro: pois há quem, entre o arvoredo irrepresentável, saiba congraçar os tumultos e devolver à casa da partida a bonança não demarcada.
Andam de apeadeiro em apeadeiro, os olhos fugindo dos mastins que se escondem nas arestas não mapeadas. Mestiçam-se nos interstícios das sílabas, amealhando o tempo precioso que fica órfão entre cada sílaba. Entesouram todo esse tempo. Sabem que o tempo não se inventa na escala por que é medido; o subterfúgio para o inventar é procurar os vazios entre duas medidas de tempo, que nesses vazios também se encontra o paradeiro do tempo.
Dizem que os loucos são evasivos, que não se ajuramentam à lucidez. Consideram que isto os desacredita. Os tão lúcidos, porém, nem dão conta como a flamância vem caiada com um véu que a obstrui. Acabam a definhar na antítese do que se dizem tutores. Por ofensa ao tempo que é uma medida escassa e por amesquinharem os loucos que sabem adestrar o tempo. Os assim lúcidos não contam nem para si mesmos.
Os loucos não se importam que lhes chamem loucos. Não se importam de serem párias do mundo irrisório. Preferem cingir a existência aos limites que estão fora das fronteiras do mundo – uma categoria invulgar de deslimites que identifica os loucos deste quilate. Eles sabem que o tesouro está escondido no entardecer onde se embaciam os segredos, já sem palavras mártires. São segredos porque querem que o sejam, não por ação do acaso. O tesouro deixa-os suados em ouro, enquanto emprestam os rostos a um retrato de fogo. Sozinhos com o seu tesouro, iluminam o dia em deposição da noite e servem a noite quando o dia se cansa de o ser.
Os loucos com esta tutela desafiam os códigos de conduta. Não se interessam pelo mundo consuetudinário que os isola em ilhas sem acesso. Nesses lugares, onde são a síntese de um sentimento puro, os loucos não esbracejam o tesouro em sua posse. Enjeitam a ostentação. Magnânimos, prestam um favor ao restante mundo: guardam para eles a condição de louco, não generosamente cunhada pelo mundo restante, e preservam-no de tamanho desqualificativo. Não querem que os não loucos desçam à condição de loucos. Não haveria tesouro tanto para repartir por tantos loucos.
23.2.21
O cão que entrou no jogo e foi expulso pelo árbitro
Não se saberia dizer ao certo se ainda eram onze contra onze que pelejavam pela bola no relvado municipal. O jogo já ia adiantado e, em estando adiantado, a probabilidade de um interveniente ter ido embora mais cedo era elevada. Para o caso, a suposição das equipas por completo. De repente, no relvado municipal entrou um intruso e passaram a ser vinte e seis a pisar o relvado. Um cão, sem pré-aviso, saltou para dentro do relvado e, em passo vagaroso, indiferente à labuta dos novos gladiadores, saltitou por ali fora.
O árbitro não esteve de modas. Interrompeu o pleito, pois as leis do jogo ordenam que o jogo deve ser suspenso se um elemento estranho nele se infiltrar. Era isso, um infiltrado, o canídeo nitidamente vadio – e nitidamente, por falta de coleira identificativa. Para o árbitro, era indiferente a condição do cão. Fosse vadio ou não, era um elemento estranho ao jogo. Depois do apito estridente, o árbitro anunciou, com a voz grossa de quem ajuíza os descaminhos dos outros, que havia um elemento estranho ao jogo e que era preciso removê-lo.
Como os pleiteadores interromperam a função, travando a correria insana à procura da posse da bola, o canídeo imitou-os. Impassível ao burburinho causado por um dos três homens que vestiam de preto, desceu as ancas ao nível do relvado e sentou-se, à espera que a correria fosse reatada. Não sabia, o cão vadio, que o árbitro não estava pelas medidas. Viu aquele homem vestido de preto a caminhar, resoluto, na sua direção. Ele não era desconfiado. Porventura o homem vestido de preto era amigo dos animais e, ao vê-lo no relvado, queria afagá-lo.
O cão equivocou-se. Em passo célere e pose militar, o homem vestido de preto meteu a mão na algibeira junto ao peito e tirou um papel vermelho, dirigindo-o, austeramente, na direção do cão, enquanto a outra mão apontava num sentido que levou o cão a inquirir se, por acaso, não seria o lugar onde umas iguarias o esperavam. O cão, insistentemente sentado, não obedecia às ordens, treslendo o significado do cartão vermelho que o árbitro zeloso exibira. Mas o cão não estava enganado. O seu olfato apurado sentiu o perfume de uma iguaria que vinha das suas costas. Era uma senhora idosa que acenava com um pedaço de carne (uns humanos disseram “bifana”), enquanto a outra mão atraía o cão ao seu encontro.
Ficou para a História o caso em que uma idosa conseguiu ter mais autoridade no jogo do que o árbitro que o tutelava. E ficou para a História o caso de um cão adotado pelo clube da terra que, em supersticioso exercício, dando-se o caso de a agremiação ter derrotado a mais rival de todas, fez do cão vadio a sua mascote.
22.2.21
A Constituição é heterossexual ou os homossexuais (deviam ser) inconstitucionais?
A verdade – que o chamado lobby gay gostaria de ignorar – é que os homossexuais não passam de uma inexpressiva minoria, cuja voz é despropositadamente ampliada pelos media.
João Caupers, presidente de Tribunal Constitucional
Premissa: a cada um o seu direito à opinião. A liberdade de expressão admite o que julgamos inaceitável, o risível, o abstruso, o nosso oposto, tal como admite o que julgamos serem ideias formidáveis, ou apenas declarações que passam anónimas pelo meio dos pingos da chuva. A liberdade de opinião é um caminho de dois sentidos: não podemos protestar contra alguém que reprimiu a liberdade de expressão de outrem e depois propor que alguém que está nos antípodas da nossa posição seja calado. Convém não o esquecer: um caminho de dois sentidos.
Interpelação: um juiz do Tribunal Constitucional devia ter um cadastro imaculado no que ao disparate em registo escrito diz respeito? Proponho um axioma em resposta (e um par de interrogações em sua articulação): todos temos o direito à tolice. Aqueles que escrevem e deixam peugada dos seus escritos, quantos já não abjuraram textos escritos num tempo pretérito? Quantos, ao voltarem a um texto com o lastro do tempo, não o reescreveriam se o quisessem reescrever?
Nem a premissa nem a factologia impedem que discorde da posição assumida pelo presidente do Tribunal Constitucional (ou por qualquer outro simples mortal). A citação do presidente do Tribunal Constitucional causa-me náuseas, mas nunca pretenderia silenciá-lo. São estas posições polémicas que contribuem para o amadurecimento da sociedade. Instigam o debate e permitem-nos assumir uma posição que não seja apenas frívola. São o rastilho do pensamento estruturado.
Como espero que a minha heterossexualidade seja respeitada por todos os outros (homossexuais, heterossexuais e outros, sem distinção), autoimponho um dever de respeito pelas opções sexuais dos outros. Não uso como recurso construções mentais (e menos ainda as reservas mentais que o magistrado tem) que dispõem rótulos quantitativos nessas opções sexuais – como os números fossem confundidos com legitimidade democrática. Eis a bitola argumentativa do presidente do Tribunal Constitucional: se és uma minoria, devias ter acesso proporcional ao palco público. Perguntar-se-ia ao douto juiz: e se a medida for ultrapassada, silencia-se o excesso para fazer respeitar a sacrossanta proporcionalidade?
A homossexualidade dos outros parece incomodar João Caupers. Há naquelas palavras um acinte mal disfarçado. O presidente do Tribunal Constitucional acantona os homossexuais, essa “inexpressiva minoria”. E revolta-se contra a voz desproporcionada dos homossexuais (ou do lobby que por eles move influências) no palco público servido pela comunicação social. Caupers joga ao jogo da adivinhação: a tal “verdade” – e isto de capturar a verdade numa moldura é todo um programa de intenções – que “o lobby gay gostaria de ignorar”, faltando saber que método indagativo escolheu para chegar a esta conclusão: fez um inquérito boca a boca (não precisa de se assustar, Professor Caupers...), ou é apenas uma impressão que assomou à sua porta? É a minha vez de entrar no jogo da adivinhação: a homossexualidade dos outros incomoda assim tanto o presidente do Tribunal Constitucional? Assalta-o em pesadelos? Ou, ao invés, protagoniza inconfessáveis delírios oníricos no juiz-conselheiro, que tenta reprimir através de uma veemente reprovação?
O presidente do Tribunal Constitucional parece muito confortável em saber que os heterossexuais são a maioria. É uma reação pueril. O que interessa se alguém faz parte de uma maioria ou de uma minoria, se o que mais interessa é se estamos bem por dentro de quem somos? Não parece ser o caso da – jogo outra vez ao jogo da adivinhação do Professor Caupers – alma atormentada do presidente do Tribunal Constitucional.
(Outra lição que se retira deste episódio é que a impressão digital do que escrevemos no passado é inapagável. E: ou somos audazes e oferecemos o nome a tudo o que foi escrito; ou somos timoratos e pensamos um par de vezes antes de dar um texto à estampa.)
19.2.21
Teoria das possibilidades
Apronto matinal. O escanhoar decisivo – dizem que uma barba negligente deixa os mais capazes de fora. Dizem; mas podiam dizer coisas mais válidas para a semântica que é código de conduta.
Alguém notou que somos peões no tabuleiro dos códigos de conduta? Jogamos o jogo sem saber do húmus das regras. Sem questionar se os adjetivos presidentes são a caução da legitimidade dos códigos de conduta. Invocam-se as emendas da alma. A redenção é a porta blindada do arrependimento.
Alguém notou que o arrependimento é uma erva daninha? Uma pessoa transgride e sabe da transgressão. Quando os efeitos da transgressão se sublevam contra o autor, ele encosta-se à parede onde convoca a consciência e persigna-se em arrependimento. E em juras, também: não voltará a transgredir (pelo menos aquela transgressão; não promete não cursar outras transgressões). Fica à espera que a jura, o verbo alado do arrependimento, opere o sortilégio da redenção.
Alguém notou que a redenção é a remissão da responsabilidade? Não há águas medicinais que disfarcem o que subiu a palco. Não é possível esquecer o ato transgressor. Não é possível recusar o ónus que reverte a desfavor do transgressor. Há uma matilha de vocábulos que está de atalaia. O dicionário pessoal não mente, nem fica anestesiado quando o palco se vira contra o transgressor. Refém de uma solidão excruciante, procura desmatar os formulários onde o libelo foi costurado.
Alguém notou que a beligerância da alma é uma emboscada? A solenidade que se impinge na cor das veias é um abismo imparável. A propensão para a beligerância é uma inventiva ao magma brando que tem pano de fundo. Desafiá-lo é uma impostura não declarada. Um sonso dilema sem serventia. Um dominó estulto, cada peça derrubada a emprestar ao todo a epiderme puída, incurável. Somos essa impossibilidade enquanto os miasmas a que damos cobertura prosperarem sem escrutínio.
Augura-se uma teoria das possibilidades que desminta os ultrajes que fermentam desde a funda ossatura do ser. Não queremos ser penhores do amanhã. Mas não podemos ser reféns do ontem que é cultura do alvoroço. A teoria das possibilidades depende da nossa assinatura. Deixemos que a vontade concorra nesse sentido.
18.2.21
Fujo do medo para que o medo não fuja de mim
As tábuas que atapetam o chão não param de estremecer. Parece que falam com quem as pisa. No leilão das metáforas, compensa a ousadia. As mãos metem-se no fiorde e trazem a água friíssima para temperar a combustão dos sentidos. O resto, são os dados atirados ao acaso. Nada é o tudo que podemos contra uma quimera sem nomes.
Anoitece. Os olhos perderam a lucidez. Emaranhados na escuridão, vultos pressentidos assumem a posse das paredes. Apenas murmuram. Mal se ouvem as vozes. As palavras são como ditongos parcelares que obstruem a inteligibilidade do texto. Lá fora o inverno apregoa-se, tempestuoso. As árvores dobradas pelo vento feérico parece que querem entrar em casa. As ruas estão desertas. As pessoas têm medo da tempestade. Têm medo de tempestades. Das atmosféricas e das que raptam a alma.
Se ao menos alguém ouvisse o medo, como estala na boca e se consome em saliva seca. Mas ninguém está em lado nenhum para inventariar o medo. Cada um fica entregue ao seu paradeiro, sem saber em que apeadeiro o medo vai sair para destroçar a paz de alguém. É o medo que fala mais alto, como se fosse o preço a pagar por um módico de civilização. Tudo seria irrepresentável se o chão de onde somos fosse o palco de um langoroso mar. É o simples olhar que desmente a ambição.
As pessoas não se tornam insubmissas quando o medo sussurra na enseada da pele. Têm medo do medo. Têm medo de ter medo. Não são feitas de uma têmpera à prova de contratempos. Por dentro do seu nanismo, desaprovam as ruturas que convocam o alvoroço. É como se fossem deixadas sozinhas no promontório, debatendo-se contra a noite tempestuosa. Nem todas se saldam pela manhã seguinte. O colorido manancial da manhã alberga-se no sortilégio de uns quantos, apenas.
Em vez do medo, as pessoas exilam-se por dentro, fingem que são um outro. Acreditam que o lastro do fingimento é o receituário para escorraçar o medo. Estão erradas. O medo não é indigente. Não se deixa atraiçoar por ardis, por meticulosos que sejam. O exílio interior exacerba as mandíbulas do medo, que morde com força aumentada. Em vez do fingimento que não silencia o medo, devia-se habitar um lugar inabitável pelo medo. Esta é a mnemónica que serve de morada ao museu dos sentidos, em constante mutação. Ou fugir do medo, para que ele não fuja de nós e deixe de nos conferir autoria.
17.2.21
Heróis da terra (short stories #300)
Uma compilação de madraços, apascentando o dia seguinte, que vem sempre depois de um dia adiado. Não é o arrastar dos pés que comina as almas. Aos seus pés, uma aguarela garrida distrai o olhar das outras mundividências. Dizem que há muitos mundos lá fora por apresentar, e nem assim se intimidam com a estreiteza dos corredores. Que não sejam abjurados. A renúncia ao conhecimento não é uma afeção. Quem quer o que lhe apraz não é merecedor de juízo azedo assinado no colo dos outros. Os heróis do mar foram gente demente que tomou conta do mar antes que o mar tomasse conta deles. Um punhado trouxe histórias para contar e o contumaz domínio de outras civilidades. Os heróis da terra comprazem-se com muito menos. Um entardecer no estio, enquanto os corpos descansam de um dia extenuante em que nada foi o que fizeram. Os braços transidos pela dormência não aceitam demandas que os habilitem ao desentorpecimento. Quem, afinal, nunca foi acometido pela hipocinesia? E deixa de ser herói (se for ajuizado que de heróis estamos carentes, o que não é certo) por ser agente voluntário da preguiça? Os heróis da terra, imersos na ociosidade, não correm o risco dos heróis do mar: não é o mar, o paradoxal étimo que reúne o belo e o traiçoeiro, que os retira da vida. Enquanto heróis da terra, firmam tanto os pés na terra que os recebe que se confundem com ela, como se eles fossem as raízes que se solevam da terra. Quem os pode condenar? Até porque se perfila segunda vantagem sobre os heróis do mar: serem extraídos ao estatuto do anonimato é risco que não correm. E, ao contrário dos azafamados, não dizem que trazem em falta tempo para o que dizem não ter tempo.
16.2.21
Reescrita
O autor não angaria a mediação das palavras para reivindicar clareza. Talvez não seja clareza que se protesta nos contrafortes de um texto. Essa mediação é um alter-ego da simplificação; infantiliza o destinatário, como se fosse preciso considerá-lo penhor de poucas capacidades que o impedem de ter uma compreensão do que está escrito.
Não se entenda que a reescrita é um exercício de abusiva simplificação das palavras que tiveram a primeira forma. Quase sempre a primeira forma não é a forma definitiva. Aceitam-se depurações, a eliminação de redundâncias, outros critérios estilísticos, uma escolha judiciosa de uma palavra que substitui outra, o enxugamento de partes do texto. A reescrita não pode ser um molde para despir o contexto das palavras que tiveram forma. Não pode constituir-se em peso argumentativo para desfazer uma certa erudição embebida nas palavras escolhidas (a erudição não é crime). Não pode ser uma tábua de salvação do leitor, porque quem escreve não está na posse das faculdades do leitor e não o deve amesquinhar passando o texto pelo torno da simplificação.
A reescrita opera como uma lima que arredonda arestas. É um recurso para tornar o texto melhor do que na sua forma original. Mas ao arquiteto das palavras não são oferecidas garantias. A reescrita pode adulterar o texto; adultera-o sempre se formos puristas ao ponto de considerar perjúrio da ideia original qualquer reescrita a que o texto se exponha. A reescrita não obedece a regras imóveis. Os cânones variam de pessoa para pessoa. A mesma pessoa pode mudar o pulsar da reescrita em diferentes momentos perante o mesmo texto. Quantas vezes se regressa a um texto datado e apetece reescrevê-lo de cima a baixo?
A reescrita é um instrumento ao serviço de quem escreve. Não tem serventia para o leitor. Este só conhece o texto depois do processo da sua reescrita. Os meandros da reescrita ficam reservados ao segredo do domador das palavras. A menos que se abra a janela da reinvenção e o escritor se exponha à interação com os leitores, autorizando-os a reescrever partes (ou o todo) do texto. A autoria deixa de ser um processo singular, passando a operar nos termos de um processo colaborativo que desagua na pomposa autoria coletiva. Esta reescrita extravasa a reescrita pura. Contamina o texto com olhares diferentes do olhar do interventor original no processo da escrita. O autor da ideia perde as rédeas do processo. Depressa passa a ser autor da ideia, desapossado da autoria do texto pelo caos a que deu caução com a abertura do processo de reescrita.
A reescrita não deve deixar de ser um processo singular.
15.2.21
Sobre o significado de deus-dará
Ele há um personagem que se automutila, de si dizendo estar “ao deus-dará”. Percorre os segmentos do dia infausto, carregando aos ombros o sinal da desdita. Precisa de compaixão. Confessa-se ao deus-dará, à espera que uma alma caritativa exerça a compaixão. Mas não tem a certeza que a compaixão seja remédio que o anula do deus-dará.
Os generosos em lista de espera não perguntam por que está o personagem ao deus-dará. Prestam-se à compaixão. A bondade exerce-se. Não interessa se quem a recebe está em estado de a receber, ou se é um pretexto para adiar espantalhos que se ficcionam em suas cabeças. Se alguém os desafiar a aclararem o que é estar ao deus-dará, desinteressam-se da empreitada. Alguns falam com desconhecimento de causa (nunca se sentiram ao deus-dará); outros, que já transitaram pela angústia e se consideraram reféns do deus-dará, preferem embaciar o passado.
Não é ao acaso que teria serventia saber o que é ficar ao deus-dará. Para intuir como agir em conformidade. A voz comum dirá que ficar ao deus-dará é não ter cais onde aportar, uma orfandade que se pressente quando a alma meandra pelos seus interstícios. Uma fragilidade que não pode ser resolvida pelo próprio. Os dados lançados congeminam contra o sujeito que se expõe ao deus-dará. Só o grande jogo das circunstâncias, aleatório, pode resolver o dilema e retirá-lo das garras dos fantasmas que encarnam o deus-dará.
Dizer que alguém fica ao deus-dará pode encerrar outro significado: desliga-se o hífen entre as duas palavras, que ficam desamortecidas. Se em vez de se dizer “ao deus-dará” se disser “ao deus dará” (o que, na oralidade, não revela diferenças), parece uma promessa com sinal divino: ao deus dará, na medida do que vier a ser dado por deus. O que pode fermentar divergências. Os crentes não aceitam que o que for dado por deus seja coercivo. Os ateus ajuramentam o vazio.
Ao deus-dará é uma provação de deus? Ou o deus-dará só se abate sobre os incréus, como punição de deus sobre os que dele descreem? Ou ao deus dará sela uma jura que deus cuidará de cumprir? Nunca foi feito o inventário das almas atiradas para o exílio de um deus-dará (ou deus dará, com hífen despojado). Deus ainda não teve tempo para desatar os nós que tratam deste emaranhado.
12.2.21
Quem quer o escalpe dos bárbaros? (short stories #299)
É dos vilões que fica a impressão digital na gramática da humanidade? Quantas vezes os vilões ficam escondidos no covarde anonimato, capazes de vilificar sem serem denunciados? Um sentimento geral perpassa entre as pedras frias que nos tingem a alma: não é ónus ser bárbaro. A menos que a mortificação interior se avive e torne o sangue insuportavelmente febril; é o próprio vilão que caminha sobre o fio delgado do seu abismo, exibindo a vilificação em arrependimento. A populaça, em gesto imponderado, arranca o escalpe ao bárbaro confesso, perentoriamente. O que faz com esse escalpe a populaça que, no apogeu do ato imponderado, se considera vingada? Restaura as desumanidades cometidas pelo vilão? Repõe as vítimas no estatuto em que se encontravam antes de terem sido presas do bárbaro? Os engenheiros da sociedade não se importam com estas interrogações. Só se importam em exercer a justiça pedagógica: cuidam do exemplo, para memória futura; e aproveitam para fazer descer a ira da vingança sobre os bárbaros que confessaram as malvadezas ou que foram apanhados no seu rescaldo. Para memória futura: e se os contemporâneos não tomarem conhecimento da justiça reparadora da populaça? E se, por falta de informação, não souberem que a malvadez acabada de punir é uma malvadez que, a ser descoberta, pode ter tradução no arrancar do seu escalpe? Este é o logro da justiça reparadora. Não repara nada, só cuida de acautelar o porvir. Sem saber se o faz com proveito. O escalpe do bárbaro, a ser exibindo, é um ato grotesco. Ostenta um poder que amedronta os viventes. Cerca-os de terror: a imagem de um escalpe não é gentil. Não chega a cumprir o seu propósito. Em todos os lugares e em todos os tempos, sempre houve bárbaros. Convictos ou incidentais. Insensíveis à pedagogia da justiça reparadora.
11.2.21
Biombo (short stories #298)
Não é pela lei das regularidades. Não é pelas leis, de todo o modo. Precisa de um biombo onde possa disfarçar do disfarce que se cola à pele. Um biombo transparente, para que, escondido, toda a gente possa ver que se está a esconder. Este é um biombo invulgar. Deixa à mostra tudo o que se intui esconder. Um biombo que desconvida o olhar forasteiro. No âmago da sua transparência, fecha-se ao olhar sem pudor que espiolha o que não pertence aos outros. Talvez o mundo esteja precisado destes biombos. Porque se tudo estiver à mostra, ainda que sob o beneplácito de um biombo, perde interesse ao olhar forasteiro. O biombo passa a ser o lugar mais seguro, o cofre onde se alojam os segredos. Por ser transparente, descativa a intrusão. A matéria-prima que desembaraça os nevoeiros abastados do olhar turvo devolve-lhe clarividência. Supõe-se que a maré está baixa, o aroma da maresia parece que não nos leva ao engano. E, todavia, sem a prova tirada a meias com a perspicuidade, não os sentidos não são honrados. É provável que os sentidos sejam alvoroçados por vultos que embaciam a clareza do dia. Mas dentro do biombo é sempre respirável, como se o ar se purificasse por dentro da sua ossatura. Não se demovem as encomendas inventariadas para o sol-posto. Não é a noite que estorva a pureza do biombo. Não é à noite que o biombo capitula. Esse lugar pequeno, com a dimensão de galáxias inteiras, é uma cidadela que não precisa de ameias. O corpo precede os contratempos, é como se ele vertesse ácido sulfúrico sobre as contrariedades. Um sortilégio caucionado pelo biombo. Um dia, alguém pediu a descrição exata do biombo. Não lhe ocorreu se não proclamar que o biombo é o exílio onde ganha coragem para o mundo lá fora.
10.2.21
Particípio passado, ou participo no passado (short stories #297)
Corria no fio do precipício, silenciando as vertigens. No fundo do abismo, estava lá o passado. O passado todo, à espera de o apanhar no seu labirinto cerdoso. Tinha a impressão de que o passado tinha sido cordial. Todavia, havia um medo a incendiar as veias, um medo da repetição do passado. Continuava na marcha malparada no fino fio do precipício. No fundo do precipício, o passado, esfaimado, preparado para o resgatar para a sua fornalha. E ele, convencido que o passado era mesmo pretérito, irrepetível, impossível de ser frequentado. Vagueava nos escombros para aferir o ónus do medo. O precipício parecia não ter fim. Parecia não ter fundo. Conseguia ver o outro lado da montanha interrompida pelo precipício, mas a cada passo que avançava era como se a terra segura estivesse mais longe. O sobressalto do que parecia prematuro nunca foi esconjurado. Havia um apressamento contra a natureza indomável do tempo. Essa era a vertigem que não conseguia derrotar. No esboço das memórias emolduradas, um esboço difuso, sentia-se amordaçado pela sofreguidão do tempo. Do tempo de que ele próprio fora acelerador. Quando dava conta, estava como o malabarista a fazer números de equilíbrio intangível num precipício que não vinha no mapa. Colado ao sangue combustível, sem conseguir povoar as noites com um repouso válido. Era refém do tempo que ele incendiava. Numa aparente negação da fúria dos elementos, que ficavam dormentes no limiar da sobranceria do tempo destravado. Talvez resolvesse a angústia se não participasse no passado. Dizia, para se convencer, que o passado era mesmo irrepetível (e que dizê-lo não era apenas para exorcizar um passado que não merecia exorcismo, pois tinha sido um passado cordial). Ao acaso, tirou a carta que albergava na manga. Todos os relógios, os seus e os que eram públicos, tinham de ser desaprovados.
9.2.21
Aguaceiro (short stories #296)
A terra não enxugava quando um aguaceiro a abençoava. Era como se os deuses despejassem a raiva sobre o chão que, pobre, já não aguentava mais água nas entranhas. A água precipitada dispunha-se sobre o chão, como se o chão deixasse de ser terra e passasse a ser uma película de água que o cobria. Entretanto, o aguaceiro pedia tréguas. Vagarosamente, o excesso de água foi sendo bebido pelo solo. Já se via que o chão era chão, terra imoderadamente ensopada, mas terra, na sua cor castanha avivada pela chuva assídua. Um colo lamacento. O horizonte pressagiava o fim das tréguas. Uma nuvem acastelada, plúmbea, percorria o caminho que vinha do mar. Contrariadas, as pessoas abriram os guarda-chuvas quando as primeiras gotas grossas se abateram sobre o lugar. A atestar pelos rostos desagradados, adivinhava-se que estavam fartas do regime de aguaceiros. Se ao menos vissem o mar, como está encapelado; se ao menos pudessem saber como o mar orquestra o desarranjo do tempo, é porque não estariam imersas nos seus afazeres – e elas tinham ouvido o radialista, logo pela manhã, lamuriar-se da segunda-feira e lacrimejar as saudades pelo fim-de-semana que terminara há poucas horas. Quase todas as pessoas protestavam, no seu íntimo, contra o inverno; e contra a segunda-feira. Estavam desabituadas do inverno que fizesse jus ao nome: os anos pretéritos tinham sido apenas uma modesta aproximação ao inverno. Ao passar o pontão sobre o riacho, a corrente abundante que agigantou o moderado fio de água impressionava. Como é possível que os aguaceiros iracundos engordem tão depressa o riacho insignificante? O meteorologista de serviço podia adiantar dados estatísticos e o “índice de saturação dos solos” em defesa do regime de aguaceiros. As pessoas, mal-habituadas, corriam na sua azáfama, ou contra a sua azáfama, suplicando por tréguas que não fossem intermitentes. Em silêncio, suplicavam pela primavera (como pareciam suplicar pela sexta-feira, ao entardecer).
8.2.21
Sem destino
As estradas não têm fim. Mesmo quando parece que acabam num ermo, ou são interrompidas por um abismo, ou por um acidente da natureza (o mar, um rio, um lago), as estradas não têm fim. Umas são ramais de outras, que estão mais alto na hierarquia. Outras prosseguem depois de sulcado o acidente da natureza. E mesmo as estradas que desaguam num ermo ou num abismo têm continuidade: não se esperando que o viandante fique no ermo ou no abismo, terá de procurar uma estrada que o tire do impasse.
O emaranhado de estradas multiplica as possibilidades. Tudo o que aumente as possibilidades devia ser entronizado como património imaterial da humanidade. É como abrir a palma da mão e dedilhar as linhas em que a mão se debate, num mais do que decálogo sobre a identidade. As estradas que se emaranham em mapas meticulosos tiram-nos da anemia de quem fica refém de um sedentário modo de estar.
Quando era mais novo, quando os mapas eram em papel, os dedos, ajudando os olhos, percorriam-nos com critério. Os mapas ensinavam os lugares diferentes e como a eles chegar. Havia os mapas gerais, só com as vias principais. E havia os mapas regionais, que faziam uma autópsia da rede viária que trazia ao conhecimento até as estradas que ainda não tinham o privilégio do asfalto. Os mapas em minúcia eram preciosos. Serviam para atalhos, se a estrada principal estava impedida por um bloqueio da polícia. Serviam para conhecer lugares idílicos que ficam fora do perímetro das grandes vias.
Hoje, os mapas não são em papel. Hoje, não é preciso pegar na régua e esquadro e costurar as bainhas que unem dois lugares distantes. Hoje, os mapas estão nos telemóveis e nos computadores. Os processadores fazem o trabalho por nós. Escolhem a rota entre dois lugares com uma rapidez imbatível. Se protestarmos por estes mapas esconderem os detalhes, é só ampliá-los para reter a minúcia procurada. E, hoje, as distâncias estão mais curtas sem ser culpa de qualquer mapa: as analgésicas autoestradas são um substituto do tempo que se subtrai a si próprio.
O que os mapas não acodem é a sede de partir sem destino. Partir, apenas, andarilhando os quilómetros acumulados no passaporte do viandante. Partir sem saber onde se vai dormir no fim do primeiro dia de viagem. Acordar, no dia depois, sem saber que estrada tomar e em que sítio pernoitar. E assim sucessivamente. Até decidir que é altura de inverter a rota e tomar caminho de regresso a casa. Pode ser em Rovaniemi ou em Antalya, em Moscovo ou em Limerick. Para chegar a casa na posse do ouro mais precioso que existe.
5.2.21
O boxeur com três dentes a menos
Quando acordou, já tinha passado a hora do almoço.
(Era preciso definir o que é a hora do almoço. Para o boxeur, o almoço acontecia quando a fome apertava. Podia ser à hora a que as pessoas tomam o pequeno-almoço, o lanche, ou até o jantar.)
Estremunhado, foi às costuras da alma para saber se a agenda para o que sobrava do dia tinha encomendas.
(Era preciso estabelecer o que era a agenda para o boxeur. Ele já não pegava numa caneta há já nem se lembrava quanto tempo. Mas tinha uma memória prodigiosa. Fotográfica. Não falhava um compromisso.)
Tinha uma visita ao dentista. No último combate, perdeu mais um dente. Agora a conta de dentes em faltas era três. Até agora fugira ao dentista. Não era dado à estética e não ia “perder casamento” (como o povo costuma dizer) por faltarem dois dentes que o afeavam nas raras ocasiões que sorria, ou quando falava. Agora já eram três dentes. Não chegava para “perder casamento”.
(Era preciso reconhecer que o boxeur não era dado às falas. Como vivia sozinho, passavam-se dias e dias sem proferir uma palavra. Se o exagero tivesse lugar, dir-se-ia que o boxeur ficava com os maxilares enferrujados de cada vez que passava dias e dias sem falar. Como vivia sozinho, não corria o risco de “perder casamento”.)
Na sala de espera do consultório, o boxeur passou os olhos por uma revista.
(Este é um lugar-comum dos consultórios: as revistas empilhadas para fazerem companhia aos pacientes, enquanto a sua paciência é testada na espera pela hora – invariavelmente atrasada – da consulta.)
Parou numa reportagem que atestava uma frivolidade sobre uma pessoa aparentemente em alta na bolsa de valores das celebridades: o senhor tantos-de-tal processou o hospital onde foi de urgência depois de apanhar uma indigestão na sequência de um jantar gourmet que meteu abundante variedade de marisco. Depois de tratado, uma salmonela destratou-o e culpou o hospotal.
(Era preciso saber que o boxeur, um garfo eminente da nossa praça – ou não ostentasse orgulhosamente a estampa de quem passeia cento e vinte quilos –, nunca apanhou uma intoxicação alimentar. A comida bruta, a que nunca se chama “iguaria”, é à prova de intoxicações alimentares.)
O dentista pergunta ao boxeur (entretanto deitado na marquesa) se quer recuperar os três dentes em falta. O boxeurresponde que, à exceção do último dente, não se lembra onde ficaram perdidos os outros dois. O dentista, diplomaticamente, não esboça um sorriso irónico. Reformula: quer o boxeur ver substituídos os três dentes em falta por dentes substitutos? O boxeur pensa e pensa e redargue que os três dentes em falta não lhe fazem falta, porque já era feio antes de ter ficado com três dentes a menos e porque, assim como assim, não sente que vá “perder casamento”.
(Era preciso saber que a estética perdera cotação na hierarquia de valores, o que era só o caso do boxeur.)
4.2.21
Procura-se a agulha, que o buraco já tem paradeiro
No parapeito do sonambulismo, o diletante aproveita a folga do poço do inferno para apreciar a paisagem. Agarra-se a um trevo de quatro folhas que encontrou pelo caminho; sabe que se o trevo vier composto com quatro folhas, é sinal de sorte. Pergunta por que deseja a sorte. Depois lembra-se (o dia de folga alvoraça um princípio geral de esquecimento): é de sorte que precisa de cada vez que desce ao poço do inferno.
O diletante esqueceu-se que o trevo já não tem quatro folhas. Gastou-o com o contínuo esfregar dos dedos e uma das folhas desprendeu-se. Pergunta: um trevo de outrora quatro folhas garante a mesma dose de sorte se for amputado de uma folha? E pergunta mais: deve doravante temer o poço do inferno como um desafio à sobrevivência?
Pelo caminho, encontrou um homem que mais parecia um vulto. Passeava um capacete puído.
- Ó homem, por que trazes esse ar tão sorumbático? Foste acometido por um mal que te alquebra?
- Deixa-me em paz, não te perguntei nada. – respondeu, agressivo, o homem que tinha a forma de vulto.
- Erras por onde, bom homem? – insistiu, diplomático, o diletante, que aproveitava o dia de folga do poço do inferno para pôr o mundo em dia.
- Que pergunta sem sentido! Se estivesse em errância, como saberia por onde tenho andado?
O diletante percebeu que o outro homem não queria ser importunado. Qualquer palavra que se lhe dirigisse era importunação. No chão, jazia o trevo outrora de quatro folhas. Já emaciado, numa exasperante decadência que se apressava, tão depressa os despojos do trevo enrugaram e amareleceram. O homem-vulto abeirou-se do diletante:
- Ó catita, sabes onde fica o poço do inferno?
- Oh, se sei! Eu sou o endemoninhado que cruza as tábuas horizontais do poço do inferno.
- Homessa, homem! Eu não perguntei que função é a tua. Perguntei onde era o Poço do Inferno.
No apogeu do diálogo de surdos, o capacete puído que vinha a tiracolo do homem-vulto despertou curiosidade no diletante.
- Para que trazes o capacete, se não te vejo motocicleta a preceito?
- Sossega, bom rapaz! Não quero tomar de assalto o teu ganha-pão.
- Então, o capacete? – insistiu o diletante, imerso numa indiscrição irreprimível.
- Já tenho o capacete. Estou à espera que alguém me ofereça o motociclo. Mas não vou para o teu poço do inferno.
3.2.21
Do que és capaz? (short stories #295)
Qual é a vedação que seduz as consoantes mudas? Previa os subúrbios da alma e não conseguia encontrar a medida do vento. Eram as palavras, as únicas sem freio. As palavras; as escritas, que as ditas esbarravam num certo pudor. E se um vulcão irradiava na boca latente, logo as algemas mentais amornavam a ousadia. Era assim que a vontade se estilhaçava nas vedações que arborizavam a paisagem. Perguntava: “do que és capaz?” e continuava sem saber por onde procurar. Às encruzilhadas sistemáticas nunca virei o rosto. Venci algumas; perante outras, dei-me como vencido – é a “lei da vida”. Por mais que conseguisse seduzir umas consoantes mudas, parecia-me que havia limites mais longínquos por desafiar, matérias insondáveis que mereciam demanda, lugares à procura de representação no mapa mental. Seria sempre ermo, o tempo. “Do que és capaz?” Devia reformular: “de que és capaz?” A diferença é entre fixar o que se cobiça e saber que meios reunir para ficar a caminho de o conseguir. Não sei do ouro preterido pelas manhãs esquecidas. Soube da absolvição, antes que o tempo encerrasse as suas portadas e a caducidade se tivesse extinguido. Sei que trouxe a água fria ao rosto e o olhar ficou caiado com a fulguração do sol fundido com o frio da manhã. Por mais que se protele o passado, não vinga a negação que se abate sobre o pensamento. Não se diga que é hibernação. Não se diga que há vultos arcaicos a pender sobre a ossatura, como se a quisessem deformar. As mãos têm de se agarrar à vontade como se fossem náufragos a sobreviver num pedaço de navio. De que sou capaz, só o saberei dizer quando a contrariedade me encontrar num apeadeiro qualquer. Só então saberei inventariar, com a ajuda da improvisação, a pauta a preceito.
2.2.21
Museu das lágrimas
“Não se desperdicem as lágrimas”, ordenou o ministro da cultura. As lágrimas vertidas pela morte de um ente querido. As lágrimas derramadas por desamores. As lágrimas apanhadas no sarcófago da mágoa. As lágrimas apenas inventariadas no lagar das emoções. As lágrimas que podiam atear incêndios, ou apenas serem recolhidas pelo mar que as recebe de braços abertos, pois o mar alimenta-se do seu salitre.
As lágrimas iam sendo recolhidas por funcionários do ministério instruídos para o efeito, a pedido de quem quisesse contribuir para o museu das lágrimas. Houve quem perguntasse se esta era a poda do ministério da cultura. O ministro, acossado, veio a público assinar a fundamentação: as lágrimas são um expoente das emoções e dos sentimentos de um povo. E se a cultura não bebe na fonte que é o sentir do povo, para que serve a cultura?
Extinta a polémica, o espólio do futuro museu ia somando decilitros atrás de decilitros. O curador nomeado para o museu formou uma equipa de museólogos para catalogar as lágrimas por entrada. Pedia-se aos doadores que escrevessem um breve testemunho que acompanhasse a doação das lágrimas. O anonimato era regra de ouro. Futuramente, os visitantes do museu das lágrimas teriam informação sobre as lágrimas inventariadas. De outro modo, essas lágrimas ficariam na restrição de quem as verteu. Perder-se-iam na pele emaciada dos rostos, em lenços amarrotados, misturadas com secreções nasais – e não se podia admitir que as lágrimas tivessem semelhante destino. Através do museu das lágrimas, os doadores consentiam a comunhão com os visitantes do museu. O tal sentir coletivo – está na moda.
Um certo dia, o curador do museu emocionou-se com a nota escrita que acompanhava um frasco com lágrimas:
“Estas lágrimas foram tiradas a custo. Morreu o meu gato. O gato que esteve na minha vida dezanove anos. Morreu nos meus braços, doente, decadente. Morreu antes que eu deixasse prolongar o seu sofrimento, que a doença terminal cuidaria de cavar mais agonia. Morreu nos meus braços. Serenamente, enquanto o efeito da anestesia se combinava com a eutanásia. E se senti uma recompensa interior pela morte sossegada do gato – quero acreditar que ele nem deu conta –, senti um lamento em forma de abalo sísmico a percorrer o meu corpo por todas as pessoas que não conseguiram morrer antes que o sofrimento as levasse, exangues. Também verti algumas lágrimas por essas pessoas.”
E o diretor do museu, por sua vez, foi vertendo lágrimas ao ler os testemunhos que acompanhavam as lágrimas doadas. No dia da inauguração, os visitantes eram confrontados, à entrada do museu, com pequenos frascos que expunham as lágrimas do diretor do museu.
1.2.21
Marcha atrás
Um protesto contra o açaime que desfigura os rostos. Parece que somos todos baldios, ou então um estribilho gasto que valida uma dependência. Alguém sugere: “e se fizéssemos marcha atrás?”
Em resposta, o silêncio povoa tudo. Ninguém sabe como responder. Ninguém sabe se a emergência do medo combina com a devolução do tempo. E mesmo que combinasse, como podia ser restaurado todo o bem que foi destruído até chegarmos ao abismo de onde se pressente um apocalipse?
Ninguém tem um oráculo do passado como se o passado tivesse sido desenhado por outros dedos. Mesmo o passado próximo é um ermo, à distância da impossibilidade. Alguém contesta: “mesmo que fizéssemos marcha atrás, saberíamos como avançar?”
Os olhos, incapacitados pela bruma persistente, não alcançam para além dos arbustos. É aí que se escondem os segredos e se encontram as respostas. O oráculo desfeito revolta-se contra o medo que transita entre as pessoas. Delas exige que sejam temerárias. Alguém confessa, em jeito de interrogação: “e não foi por sermos temerários que agora suplicamos pela marcha atrás?”
As semanas também se revoltam, no seu passar vagaroso. É o tempo, cansado de ser refém de algo que lhe é exterior. Pela primeira vez, os que lamentam a exiguidade do tempo desejam que ele fosse veloz. Acreditam que o exacerbar do tempo resolve os dilemas em que se consomem. Reféns da falta de lucidez, limitam-se a adiar o tempo sem o saldarem. Alguém se antecipa ao clamor: “e existe a possibilidade de engrenar a marcha atrás?”
Todos descobrem que o veículo em que se fazem transportar não tem marcha atrás. Uma voz no meio da multidão, submersa na sua metade açaimada, adverte, com o olhar de renúncia: “a marcha atrás é uma impossibilidade”. Faz-se silêncio. Demoradamente. Parece que todos emudeceram. Não estão preparados para continuar a avançar. E souberam, na própria carne, que não podem engrenar a marcha atrás.
Colados ao cuspo do silêncio, aventuram-se no espaço sem limites. Vão descobrir, com todas as dores intrínsecas, que a escuridão será a sombra que enforma todos os corpos. E uma voz murmura, repetidamente: “não há marcha atrás, não há marcha atrás, não há marcha atrás...”