1. O ilusionista esqueceu-se das peças do puzzle. Até a própria serpente anda à solta, admirada com tanta liberdade. As pessoas da entourage do ilusionista acreditavam que o homem tinha um elixir da juventude escondido. Nunca lhes ocorreu que a genética também é propensa a contratempos.
2. O tradutor de mandarim foi apanhado no pátio a chorar convulsivamente. Teimava em falar em mandarim, só em mandarim, fazendo de conta que estava esquecido do idioma mátrio. Um amigo desconfiou que era o tradutor de mandarim a tentar esquecer as convulsões que se atravessavam na sua vida. As convulsões vinham alinhavadas no idioma mátrio.
3. O arrumador de carros andava sempre com um livro debaixo do braço diretor. Os senhores engenheiros que ali estacionavam limitavam-se a acenar com a “moedinha” antes de irem à sua atarefada e muito importante vida. Um dia, um conhecido ator estacionou o automóvel. Quando viu o arrumador na posse de um livro (Heidegger, ainda por cima), o ator ofereceu-lhe uma nota de cinquenta euros e confessou, admirado: “este é o tamanho da gorjeta que merece por ter tornado o meu dia num bem tão precioso.”
4. Antes que a noite fosse omissa, as raparigas foram beber mais um shot. Era noite das raparigas. (Ou deraparigas, acabaram a noite sem se decidirem.) Não queriam a companhia do sexo masculino. Os rapazes, sabedores da discriminação, feridos no seu imenso garbo masculino, foram em demanda de outras mulheres. É nestes pequenos retrocessos que se sutura a inferioridade masculina.
5. Sem saber da matéria confessada, o sacerdote livrou-se da sotaina e dirigiu-se ao lugar da cidade onde havia os melhores concertos de música progressista. O sacerdote só mudava de roupa. Levava consigo todo o lastro metafísico. Segundo ele, não havia incompatibilidade entre a música moderna e o catecismo (por mais que parecesse óbvia a contradição): “se fosse vivo, Jesus Cristo andava a abanar a cabeleira em concertos de post punk”, recordou.
6. Uma sereia submergiu na doca e assentou os cotovelos na madeira untuosa do cais. Olhava em redor, deslumbrada com o silêncio e com o deserto em que a noite se transformou. Ao longe, um vigilante notou a silhueta que se desenformava das águas lodosas. Não fosse pelos muitos Martini que tinha bebido, ia jurar que era a silhueta de uma sereia (muito embora só medisse a parte do corpo que tem afinidades humanas). Não contou a ninguém, antes que o tomassem por ébrio e perdesse o emprego.
7. Era com apego que os amantes entrelaçavam os dedos. Faziam-no às escondidas, que temiam ser descobertos por pessoas dos seus conhecimentos – a probabilidade era elevada, pois ambos eram “figuras públicas”. Juraram que deixariam de se encontrar. O desejo seria reprimido pelo estatuto e pela urgência em manter as veias da estabilidade e as aparências de que é feito grande parte do mundo que coabitam. Eros não perdoou e sobre os amantes lançou uma maldição: nunca mais haveriam de amar (no sentido físico do termo). O líder do partido da extrema-direita já não precisava de castrações químicas. Tinha Eros como aliado.
8. A serpente andou perdida pelos baldios. Com sorte, descobriu o paradeiro do ilusionista. Mas o ilusionista nem sequer sabia o que era uma serpente.
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