Dizem: “cara de poucos amigos” para retratar o cenho do revisor dos comboios. E porque dizem “cara de poucos amigos”, a não ser se for para insistir na tecla das quantidades como sinónimo de fortuna? Não seria de melhor tom aquiescer que é preferível ter poucos, mas bons, amigos do que muitos amigos que, provavelmente, fazem o papel de rato ao primeiro contratempo?
O revisor poderá ter cara-de-outra-coisa-qualquer. Que fique devidamente registado. Dele não se sabe o que é um sorriso. Mas quem espera que um revisor que passa o dia de trabalho a verificar a validade dos títulos de transporte exiba um sorriso fácil? Aos críticos, talvez não tenha ocorrido o exercício pedagógico da troca de lugares. Talvez deixassem de ser messiânicos com o rosto do melancólico revisor dos comboios e se lembrassem de indagar os contornos dos seus rostos próprios.
Alguém reparou, a meio de uma manhã que não se resgatava da tristeza da invernia, que o revisor dos comboios se fazia acompanhar de um guarda-chuva. Não seria de esperar o contrário, pois aquela era uma manhã destemperada por chuva copiosa. Um estroina, contrariado pelo repetido tema de conversa ser o revisor (mas só quando se certificavam que o homem tinha abandonado a carruagem), deixou cair o seguinte: “se tivessem reparado que o revisor também traz guarda-chuva nos dias de sol...”
Eram muitas as observações sobre o revisor dos comboios, mas ninguém tomava a iniciativa de dirigir as perguntas que enchiam o imaginário dos utentes dos comboios de dúvidas. Até que um dia, uma sexagenária meteu parêntesis no cansaço matinal de quem conta os dias até à meta da reforma e abordou o revisor quando este pediu o título de transporte:
- O senhor revisor anda sempre com um guarda-chuva e hoje os meteorologistas não preveem chuva.
- Tenho as minhas razões, minha senhora – retorquiu o revisor, num tom tão polido que deixou os circunstantes ainda mais atónitos.
Uns dias depois, comprovaram a utilidade do guarda-chuvas. Um mariola tentou fugir ao ser descoberta a invalidade do título de transporte. O revisor deu um passo em frente e, com destreza circense, lançou o cabo do guarda-chuva para a frente e alcançou o mariola pela gola.
Doravante, o mariola nunca mais arriscou ser apanhado à má-fé num comboio. Só a vergonha de ouvir a gargalhada tonitruante de um halterofilista, enquanto dizia, em voz efeminada, “olha o mariola, apanhado pela gola!”, foi terapia suficiente para não voltar a delinquir. Já o revisor só queria que os dias passassem sem ter de usar o guarda-chuva – e não era por ódio à chuva.
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