As espingardas estavam gastas. Pareciam fartas das pessoas. Não eram elas que compulsavam o medo de quem podia ser alvejado. Também não acautelavam a loucura dos estouvados que louvavam as armas de fogo. Se ao menos soubessem que tudo tem o traço do efémero, talvez se distanciassem das espingardas.
As espingardas eram, sem o saberem, os seus principais adversários. Se as suas intenções eram nobres para um curador da antropologia, elas eram suicidárias se as armas tivessem a objetividade de cuidar dos seus interesses. Não era o caso. Porventura tinham alma. Uma alma que era desconhecida pelos seus portadores, os desalmados que desatavam a disparar contra corpos inimigos, povoando guerras com o sangue tornado impossível.
Os beligerantes sabiam que as armas não falavam. Ou, por outra: falavam através das balas de que eles eram ordenantes. Não desconfiavam que as armas tinham alma. E que elas se contorciam com dores de cada vez que eram disparadas para selar a morte de alguém. Mesmo não sabendo das vítimas o nome, eram as espingardas que garantiam as lágrimas obituárias. Eram as armas, e não os seus portadores, que se transcendiam num módico de humanidade.
Todos sabiam que o prazo de validade de uma espingarda excede a esperança de vida do seu portador. O material metálico garante a longevidade das espingardas (desde que sejam bem tratadas, e os inscientes que delas cuidam não poupavam no esmero – no esmero que não dispensavam a nenhum humano). Se não fosse pela longevidade das ligas metálicas usadas na sua fabricação, a longa vida das espingardas era caucionada pela efemeridade dos beligerantes. Uma espingarda nunca sabia se ficava órfã no dia seguinte. A verdade é que nunca ficava. Por um soldado morto no palco dos combates havia sempre um substituto, e sem demora. As espingardas não tinham dia de descanso semanal.
Desta métrica surrealista não se safava o mundo hipotecado pela insanidade banal. Só se salvavam as espingardas, vítimas inocentes da demência dos Homens, elas que eram o vazadouro das lágrimas em vez do festim dos loucos. Estes, fingindo não saber o que é efémero e como dele são reféns diletos, prosseguiam a cavalgada sem travões com o abismo a dois passos de distância.
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