14.5.21

As mãos artesãs (short stories #321)

Hotchip, “Huarache Lights” (live at BBC 6 Music Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=pnGlTYchF-c

          Este é o combustível que ampara o tempo doloroso. As mãos; as mãos que se fazem artesãs e lenificam o corpo outro. As mãos que se tornam um sortilégio, sem paga à espera, apenas um despojamento que alimenta quem delas tira partido. Não se diga que não há remédio que nos livre da decadência. A meio da erradicação da claridade, um vulto proclama a libertação. Não há velharias que tinjam o dia com o amplexo do medo. A decadência virá no muito depois. Não se pressagiam os dias gastos em modos compostos pela ternura desenhada pelos dedos meticulosamente distraídos das mãos artesãs. Adivinha-se: este é um artesanato que ninguém desdenha. E até os desertores que, refratariamente, abjuram outras mãos, não recusam a quimera que é povoada pelas mãos artesãs. São elas que dispensam as palavras. São elas que se substituem às falas que, no palco onde se arbitram as comparações, são inexpressivas. As mãos cingem o corpo aos seus deslimites. São elas que trazem o corpo para o exterior de si, numa partitura onde as regras não têm aceitação. Por isso não há paga que chegue para compensar as mãos artesãs. A não ser que se devolva o jogo e o fautor do artesanato seja ungido pelas outras mãos, agora artesãs. Pois as mãos que se entretecem neste artesanato colhem em si os rudimentos do seu próprio deleite. A cartografia do corpo outro é uma dádiva; a paga não esperada que nem assim motiva as mãos artesãs. Na sua voz que é o aveludado da pele, irradiam as bandeiras irredutíveis de uma certa humanidade que se julgava perdida no labirinto da modernidade. Não é ascetismo; há um hedonismo que não se disfarça no menear coreografado das mãos artesãs. Todos se saldam vencedores quando as mãos artesãs se emancipam das algemas.

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