3.5.21

Este que não sou eu

Max Richter, “On the Nature of Daylight”, in https://www.youtube.com/watch?v=rVN1B-tUpgs

O eco que vinha do espelho não era a representação da sua imagem. Não se reconhecia. Dizia: “este que não sou eu, aqui diante do espelho. Forasteiro de mim mesmo.” 

Os dias lacunares transfiguravam-se em palcos distantes. E ele, estranho por dentro de um corpo reconhecido, como se houvesse uma espada a separar os dois hemisférios e se sentisse uma amputação do que era. Ou, pelo menos, do que julgava ser. Não podia recusar a possibilidade de tudo ser um erro de perspetiva. Ou seja: que o lugar de onde mergulhava no magma fosse um mau ponto de partida. E tudo o resto viesse contaminado por um ângulo distorcido, as imagens que passavam no olhar apenas como uma farsa, não reconhecida. 

Ao acordar, não se lembrava de nada. Dos sonhos e, o que era mais angustiante, dos dias pretéritos. Era como se o coma tivesse sido o estado anterior e do coma sobrasse um vazio sem espaço por preencher. E, todavia, todo aquele vazio era um espaço. Não tolerava os lugares vazios. Sempre dissera que os lugares existem para serem espaços ocupados. E ele sentia-se um lugar desocupado, uma matriz que negava ser o que não sabia ser.

Ou então, fora apenas um pesadelo. Uma viagem pelas águas tumultuosas que se despenhavam num abismo medonho. E, no remoinho restante, o corpo atirado, convulsionando-se contra as marés fáceis que não têm vencimento. Ao fundo, no pantanoso lugar onde tudo se aquietava, um espelho disfarçado de vulto. E o eco do espelho, ao início uma silhueta disforme, irrepresentável, para aos poucos se avivar nos contornos de uma pessoa que não era ele. Mas era ele, parado diante do espelho, amedrontado pelo irreconhecimento.

Preferia que tivesse sido um pesadelo. Não o podia atestar. Dos pesadelos só sabia existirem e por eles era sobressaltado. Raramente se lembrava das costuras de um pesadelo. O vazio do passado parecia caucionar a deslembrança. E era através da deslembrança que prefaciava aquele pouco mais do que vulto parado à frente do espelho, aquele tão assustado com a imagem reverberada pelo espelho. Aquele que não era ele. Procurou no avesso do espelho, como se precisasse de uma veia de segurança, uma prova de identidade.

O avesso do espelho era baço. Não deixava ver nada. E ele sossegou-se: era ele, no avesso do espelho. 

Sem comentários: