24.5.21

Falsa partida

Sharon Van Etten & Angel Olsen, “Like I Used To”, in https://www.youtube.com/watch?v=5ibj87fwRaM

Os concorrentes atiram-se apressadamente à água. Ainda não era para contar. O juiz responsável pela casa da partida sibilava o apito, ainda mais furiosamente, para os concorrentes saberem que tinha sido falsa partida. Mas os concorrentes, cegos pela sua demanda, não ouviam. As braçadas ritmadas levavam-nos para longe. 

As braçadas dos concorrentes levantavam a água do rio que se aformoseara para os receber. Não é todos os dias que atletas de primeira água emprestavam os seus corpos ao rio. Bem podia o rio ecoar os sonoros protestos do árbitro da partida, que todos ouviam menos os concorrentes que continuavam a sua safra. Mas o rio – dizia-se naquela cidade – só falava com os poetas; ou melhor: só os poetas é que conseguiam ouvir o rio. Os concorrentes, alheios à poesia e sabendo que o rio era apenas um instrumento da sua demanda, estavam quase a chegar à boia onde faziam a viragem de regresso a terra. 

Visto em jeito de panorama, o efeito dos concorrentes a sulcarem o rio com as suas braçadas competitivas parecia um cardume que aflora à superfície e peleja pelo melhor lugar. A sorte dos concorrentes é que, ao contrário dos peixes em extático arremedo beligerante, não correm o risco de serem abocanhados por gaivotas esfaimadas. E lá prosseguiam, as braçadas trazendo-os para a meta, mal sabendo que o esforço seria decretado inglório pelos juízes da competição.

Quando puseram pé em terra, foi-lhes dito que tinha havido falsa partida. O concorrente que chegou em primeiro lugar não estava em si. Todo aquele esforço em vão, enquanto recuperava as forças extemporaneamente gastas, o dorso dobrado sobre as pernas. O favorito riu-se à socapa: a prova correra mal, mas não tinha contado por causa da falsa partida. Podia ser que na repetição conseguisse confirmar o favoritismo. Depois de recuperadas as forças, o concorrente que cortou a falsa meta no falso primeiro lugar quis saber por que fora decretada falsa partida. Responderam-lhe, em lacónicas palavras, que o sistema descobrira que alguns concorrentes se anteciparam uns milésimos de segundo à ordem de partida.

Foram esses milésimos de segundo da falsa partida que lhe faltaram para averbar a vitória a sério, quando a competição foi repetida. O favorito conseguiu confirmar o estatuto. Ficou provado que fora mesmo falsa partida. E os arautos das iniquidades descobriram mais um filão para provarem que a vida, e o mundo em que ela medra, são o húmus de uma tremenda injustiça.

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