26.5.21

O homem que desenha capas para discos que não existem

Interpol, “No I in Threesome”, in https://www.youtube.com/watch?v=eAaXS_wioYg

Andar de trás para a frente: era assim que as pessoas desandavam. Não percebiam. Antes que fossem fantasmas obeliscos a ungir as anestesias das pessoas autómatas com chuva tépida, era bom que elas se emancipassem do torpor com que tinham firmado contrato. Nunca se viu esmero quando se anda para trás. O sono coletivo pode ser suicidário.

Ele insistia num gin tónico como aperitivo dos jantares. Não porque fosse moda. Fosse como fosse, ele era a antítese dos modismos – e ai de quem o desmentisse. Os pequenos goles amaciavam a boca. Convencido que o paladar se congeminava no apuramento que era preciso para o jantar, ainda que o jantar fosse um monástico prato de sopa e uma peça de fruta, fruía o gin tónico. Era a primeira vez que se entregava a um ritual. Um dia, uma amiga advertiu-o que só o gin tónico tinha mais calorias do que a mera sopa superveniente. Ele não se incomodou, nem desertou do habitual gin tónico. Não era a obesidade que o demovia.  

De cada vez que saía de casa – circunstância que vinha a diminuir de frequência: a misantropia tomava conta do sangue a cada dia que passava – não olhava para as pessoas. Desviava o olhar. Não ia, de propósito, aos lugares mais frequentados. A urbe começava a ser cansativa. Diziam que era culpa do turismo e a cidade era cada vez mais turística. De um miradouro caucionado pela noite tardia, ele concluíra que não sabia quem era. Já não se sentia cosmopolita como outrora.

Abstraído de grande parte do que o rodeava, começou a ensimesmar. Escrevia páginas e páginas sem conseguir apurar o sentido das palavras. Pensava, muito. E depois de horas a fio imerso em pensamentos herméticos, era como se tivesse saído de si sem que tivesse saído do mesmo lugar. Regressava a si, furtivamente, não fosse haver uma beligerância entre aquela parte de si que procurava exílio de si mesmo e o seu eu ainda centrípeto. Combinado com a decadência, tomava posse de um certo sentido de desidentificação.  

Não era de passatempos. Em pequeno, umas cadernetas de cromos (quem nunca foi colecionador de cromos?), antes de as levitações morais o conduzirem por labirintos raramente frequentados. Agora, era a música e pouco mais. Tempos houvera em que os fins de tarde vinham acompanhados de poesia escolhida ao acaso. 

Admirava os poetas. Todos e de todos os géneros. Era mais do que admiração: invejava-os. Sempre quis escrever como os poetas, mas sabia, no seu mais profundo haver, da sua incapacidade. Era um pouco como os ilusionistas que ficam com um imenso nada depois de consumarem o truque. Ou como aquele amigo que passava os dias a eito a desenhar capas para discos que não existiam.

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