7.5.21

O jornalista que (veio-se a descobrir depois) estava a soldo da Volvo

Efterklang, “Modern Drift”, in https://www.youtube.com/watch?v=vVj3rTWfVVw

Mote: “Suspeito de assassínio foge à polícia, mas acaba espetado na frente de um camião Volvo.”

O sonho do jornalista era ser proprietário de um Volvo. Remediado, contudo, os proventos da profissão mais a carteira de despesas (que era considerável) não deixavam que o sonho passasse de sonho. Tinha conseguido angariar umas parcas poupanças mal se libertou de alguns compromissos financeiros, à medida que uns biscates inconfessáveis trouxeram algum desafogo às finanças pessoais. Mas as poupanças ainda não chegavam e o sonho do Volvo continuava adiado.

Todavia, era um sonho que apertava o sino da angústia. Ele, o sonho, mesmo à mão de semear e a prudência aconselhava a adiá-lo por algum tempo. Não seria muito tempo – mas a medida do tempo é sempre subjetiva. Só a ideia do adiamento era insuportável. O jornalista desconfiava que o tempo conspirava contra ele: este peso sobre a jugular, como se o sonho estivesse a uns centímetros e a suposição de que o tempo seria um vitral estilhaçado se não se cumprisse antes do tempo.

O jornalista teve uma ideia. De visita a um stand da Volvo, proporia uma contrapartida: um desconto na compra do Volvo dos seus sonhos contra a disponibilidade para fazer publicidade indecentemente mal disfarçada no meio das notícias da sua lavra. A proposta foi submetida à consideração superior. Para sorte do jornalista (que continuava a apostar na conspiração do tempo contra a sua saúde mental), a resposta não demorou. A Volvo aceitava vender uma viatura de serviço por metade do preço, com a promessa (vertida em letra de contrato) que o jornalista cumpriria um mínimo de seis notícias anuais com a mal disfarçada publicidade à marca.

Já ufano ao volante do seu seminovo Volvo, o jornalista passou à etapa seguinte: encontrar notícias onde a Volvo viesse a talhe de foice. No próprio dia, a pesquisa ofereceu-lhe a rocambolesca perseguição a um (alegado) assassínio que terminou quando este chocou contra um involuntariamente justiceiro camião que se intrometeu no seu caminho. O jornalista sondou a filmagem que acompanhava a notícia com a minúcia possível e descobriu que o camião era Volvo. Redigiu a notícia. E, em vez de escolher como título “suspeito de assassínio foge à polícia, mas acaba espetado na frente de um camião” – o que seria compatível com o manual de estilo que evita publicidade gratuita no meio de uma notícia –, ele acrescentou “Volvo” como palavra final ao título da notícia.

E ninguém estranhou o título da notícia, como ninguém desconfiou que o jornalista estivesse a soldo da Volvo.

(Declaração de interesses: o narrador não é proprietário de um Volvo, nem o sonha ser.)

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