Arrasta-se pelos interstícios do medo, o jogador. Não tem vontade de se curvar perante os mastins da revolta, que ameaçam com os caninos arregalados como lanças afiadas à jugular. O jogador joga. Em doses variáveis: umas vezes, é modesto ao lançar os dados à incerteza; outras, tomado por um frémito cuja origem desconhece, joga tudo, numa cartada demencial que pode deitar a perder tudo. E até pode perder a vida. O jogador não se intimida. Sussurra, só para ele ouvir: “assim como assim, a vida será perdida um dia destes.” E, altivo, atira: “eu arrisco. Eu arrisco.” – a segunda frase como se fosse o sublinhado da primeira. Arrisca. Contra os obuses da incerteza, dando de si um pedaço de corpo como caução da desfeita. O jogador não se arrepende. Conserva algumas cicatrizes que o fazem recordar pleitos mal rematados. Uma vez disse a alguém que se inquietava com a sua audácia: “se me entrego à monotonia, não sei se resisto.” O lugar-comum não era moradia onde o encontrassem. O seu passatempo preferido era desarrumar a ordem instituída. Ver a montagem do caos. Apostava contra a serenidade. Que importavam as águas mansas se através delas não saísse do mesmo tempo? Nos tempos livres, conspirava. A conspiração era a irmã gémea do jogo em que participava. À partida, não contemplava a hipótese de cartas sem provimento. Os trunfos podiam ser desmatados com o verbete da vontade. Pois se nem sabia das costuras do tempo. Nem das bocas seladas que se ajuramentavam à sopa repetida dos estimados zeladores dos hábitos. O jogador apostava contra os hábitos. Sabia que as probabilidades jogavam contra ele. Mas continuava a subir aos palcos, pese embora a sua quase septuagenária condição. Não se podia estimar que tivesse havido um destino espinhoso a atapetar o caminho do jogador.
6.5.21
O jogador (short stories #320)
Mew”, Conforting Sounds” (live in Beijing), in https://www.youtube.com/watch?v=pJZAj9pZic0
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