A tortura incendeia os dias contínuos. Não se adestram os sentidos para a ira sem freios que adoenta tudo em redor. A cada passo, um abismo escondido. Se as armas terçadas fossem iguais, as cicatrizes não eram um medo sem rosto. Os povoados parecem habitados por seres robotizados que não falam.
As pessoas dizem que dizem. Quase ninguém fala na primeira pessoa. O paradeiro das palavras é uma incógnita. É como se tudo o que é dito fosse de autor anónimo e sucessivas camadas de éditos se acrescentassem na constelação caótica das palavras. O idioma esvazia-se. Deixa à mostra os pescoços enrugados que carregam o peso do tempo. Por isso, a tortura em silêncio que assenta na pele das pessoas. Não dão conta. Só quando acordam e pressentem mais uma cicatriz a entrar na pele.
No penhor do passado, ninguém invalida contratempos. Todos fingem. Todos habitam a ideia ilógica de si mesmos, como se o disfarce das suas personagens fosse suficiente para aplacar as dores. Como se fosse suficiente para remediar a tortura que é o nome vão dos pesadelos que não têm exceção. Tudo de esconde. E, todavia, não há segredos em contumácia. Os olhos emudecem. Preferem o silêncio para não se queixarem da tortura.
A rebelião insinua-se num patamar que parecia inacessível. Em vez de juras, o futuro enche-se do espaço vago em que são sabres embainhados que falam em vez de palavras. O medo deixa de ser a geografia. Aprende-se a encontrar a ignição de abalos sísmicos que ajudam à refundação da medula mais funda. As vigas que acolhem a ossatura tornam-se densas, ganham calo. Pois a rebelião ajuda a derrotar a tortura inominável. Se houvesse um pintor nas imediações, teria o mote para uma aguarela flamífera.
Toda a cólera se extingue no tribunal dos silêncios. É assim que funcionam as rebeliões. Mostram-se como um avesso que não tinha sido pensado. São como a lava bolçada que não estava inscrita no manifesto do dia. E, porém, sedimentam uma fala que se ajuramenta a tinta-da-china.
Sem comentários:
Enviar um comentário