16.9.24

Cidade fantasma (excurso pela masculinidade tóxica)

Nick Cave and the Bad Seeds, “Conversion”, in https://www.youtube.com/watch?v=NHbQFArmxdc

Também posso ter teorias interiores: os marialvas que sobem muitos degraus acima das mulheres e passeiam prosápia, fazem-no como válvula de escape de inconfessáveis fragilidades intrínsecas. 

Elaboro: desprezam as mulheres e consideram-nas o sexo fraco porque se recusam a admitir que fraco é o sexo deles. Em abono da minha teoria gratuita, atiro para o ar uns elementos fartamente especulativos: estes homenzarrões de falaz linhagem não admitem que não são amantes dignos do termo, porque terão notado (se é que não houve mulheres que lhes disseram num assomo de franqueza) que não conseguiram atingir se não o seu próprio clímax, incapazes de cuidarem da reciprocidade que não lhes importa. Não se lamentem de serem rejeitados no mercado dos prazeres carnais por apenas cuidarem do seu, num egoísmo que quadra com os cânones da masculinidade tóxica.

Atormentados pelas dúvidas existenciais que levantam tempestades interiores e abrem fendas no seu muito prezado orgulho másculo, vingam-se nas mulheres, que são atiradas para um lugar secundário na ordem social. Manifestam um tal jaez intelectual que os eleva ao olimpo reservado aos apedeutas. Por fora das angústias interiores que ora os consomem sem darem parte de fraco, ora asfixiam como parte do fingimento de que fazem parte, os marialvas acusam as mulheres de não conseguirem integrar a comandita do prazer e diagnosticam o mal: está nelas, longe de admitirem que personagens tão varonis possam ser apontadas pelas omissas proezas do foro.

Ato contínuo, tecem os caminhos simplistas nos vagos e também simplistas corredores do raciocínio em que se debatem: não podem ser acusados das frustrações carnais das suas parceiras, habituais ou ocasionais, pois eles tiveram prova cabal do seu desempenho que teve o epílogo esperado. Comportam-se como se um par dançasse apenas com as pernas de um deles, o outro desobrigado de contribuir para a sintonia do duo. O sexo, para estes beócios, é uma interação em que os dois corpos se desligam quando o deles se saciou. Pobres de qualidades mentais, endossam a culpa da coreografia embuçada para as mulheres. Sem saberem que deles é tanta a responsabilidade pelo auge que elas não alcancem.

A masculinidade tóxica é um sintoma da tremenda fragilidade dos varões que se passeiam ufanos das suas proezas que não passam do calibre do imaginário. Rejeitados por elas, ou pelo menos sabedores que elas não os avaliam como eles têm a certeza que devem ser avaliados, vingam-se dedicando o desprezo a quem está destinado a ser um ser inferior. 

Não dão conta que tanta prosápia, tanta arrogância, são o sinal distintivo de que eles é que são o autêntico sexo fraco.

13.9.24

Foragido (short stories #471)

Kidd Funkadelic, “Maggot Brain” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=3aAzdHnYfuk

          Penso rápido, que as cicatrizes não demoram e o vagar embota as palavras pendentes. Se não forem ditas, ficam sem testemunhas: ficam desertas. A aridez, por conta de quem as guardou por dentro e as deixou no friso do silêncio. Se forem vítimas dessa abstenção, nunca se saberá que curso levariam, que ondas de choque podiam causar se tivessem sido emancipadas dessa hibernação forçada. Penso rápido, enquanto verto uma casca de limão na água que repousa da fervura. Há pouco passei no mercado e as cenouras estavam perliquitetas, ungidas por uma cor avivada – houvesse conspiradores por perto e diriam tratar-se de uma propositada operação para dar lustro às apeácias. (Aposto que julgavam que a cenoura era um tubérculo.) Entre a multidão, uma mulher lia a bíblia perto de uma esquina movimentada. Tinha montado um púlpito devidamente ornamentado com os dizeres “ler a bíblia”. Ninguém parou para a ouvir. Nem com as promessas de paraíso se conseguem mercar almas para a coutada dos deuses. Parece que as pessoas acreditam mais na vida do que na morte. O paraíso e as juras de felicidade só ao alcance dos que chegarem ao céu é um logro: não há testemunhos válidos de que assim seja e, a crer nas escrituras, a vida terrena soa a castigo enquanto não se é encomendado ao exílio celestial. À falta de prova outra que não seja a crença nos dogmas (“a verdade”, insistia o padre na homilia aos desatentos), desautorizam-se os sentidos. Oxalá os desenganados não se atirassem de cabeça para charlatães que navegam na antítese dos curas de religiões variegadas. Deixem os vigilantes silenciosos em paz com a sua função. Não descuidamos os preparos metódicos, quase como se estivéssemos agrilhoados a uma superstição que ultrapassa as crenças pela esquerda. Depois, tudo se desmente (menos a superstição teimosamente não remissa). Parece que somos foragidos. E fugimos de nós mesmos.

12.9.24

Osso vaidoso (dá na pimenta)

Osso Vaidoso, “Elogio da Pobreza”, in https://www.youtube.com/watch?v=eA32AyqG9mQ  

Atordoado, patrocino a pele de galinha. Há aquele olhar que está virado para a transgressão – dirias, em jeito de memória futura, que está explicado porque viraste as costas às leis e ordenanças, um certo savoir-être com laivos de anarquia. 

Atordoado e, mesmo assim, penhor de uma bússola que certifica apenas os paradeiros em perda. Não se esperem localizações determinadas com precisão matemática. Não têm validade esses espiões disfarçados que querem saber de todos os paradeiros possíveis. Este é um deslugar que se desliga de pertenças, ou um lugar onde se açambarca a gramática da despertença. Um feixe de desacontecimentos – antes que se esgotem todos os “des” e o resto fique com a espessura de uma maionese deslaçada. 

Nem por isso renego o osso vaidoso, o ínfimo osso vaidoso que se esconde bem próximo do magma que hiberna como se fosse um vulcão adormecido. As juras latentes não passam de miragens que rendem o lugar da desesperança. Não são as manhãs sombrias que arrematam a amargura que rima com a deselegância do mundo. As manhãs são sempre a melhor elegia da noite que é sua véspera. Um encantamento que reabilita o horizonte entrecruzado nos dedos que desenham o dia vindouro. Às vinhas onde estagia o pensamento vou buscar as palavras que não se coíbem com a apatia. Aprendo que o dia vindouro não pode ser um presídio.

Não é imodéstia consagrar o osso vaidoso que descuida os preparos convencionados. Mantido sob a tutela apertada da discrição, ateia a combustão da pele que a reveste da indiferença necessária. Podem verter toda a pimenta sobre as feridas por cicatrizar; a tatuagem indelével, o recobro onde levitam as cicatrizes esperadas, cobre-se de coragem quando os dias se servem de contratempos. Empunho o espelho retemperado e escolho o tempo a preceito; não me deixo enfeitiçar pelas juras do futuro, o corpo ficaria amortalhado na semântica embuçada que arremata as palavras maçadoras.

Próximo do mais profundo magma, o osso continua vaidoso. Mas não digo a ninguém.

11.9.24

O bibliotecário das folhas outonais

Morrissey, “Everyday Is Like Sunday”, in https://www.youtube.com/watch?v=hv8dhQkmZEo

O epílogo do Verão é sempre um achado. Prometem-se os dias sem o sol agressor, sem o suor a pastorear o cansaço do corpo, a chuva idílica, as primeiras tempestades outonais que se abatem com o vento iracundo de sudeste. 

As folhas das árvores começam a ficar caducas. Depois caem. Varrem o chão, entoadas pelo vento tempestuoso. Amontoam-se num descaro anárquico, colonizando passeios, jardins, sarjetas, os recantos mais escondidos, os vidros dos automóveis. Levantam-se numa coreografia avulsa quando o vento esbraceja, atirando-se ao acaso contra os rostos contrariados das pessoas que frequentam as ruas. O epílogo do Verão é a sua maior outorga. É preciso esperar pelos terminais dias de setembro para celebrar a maior proeza do Verão.

O bibliotecário das folhas outonais é tomado pela agitação, recolhendo amostras das folhas derruídas. Inventaria-as metodicamente, sempre que o Verão se liquefaz e o Outono ocupa o calendário na sua vez. É uma tarefa que muda todos os anos. Poder-se-ia pensar que não: a diversidade da flora é escassa, os compêndios ensinam que a folhagem de uma certa árvore obedece a um arquétipo. A quimera do Outono, que é todos os outonos perseguida pelo bibliotecário das folhas outonais, é registar as diferentes matizes das folhas caducas que num chão qualquer encontram sepultura. As folhas enrugam de maneira diferente, ganham cambiantes diferentes: os Outonos são como colheitas sempre diferentes. Deve haver explicação (científica) para a diversidade de amostras que o bibliotecário das folhas outonais recolhera estes anos cumpridos.

Com o seu critério metodicamente obedecido, regista as diferentes cores, as diferentes texturas, inventou uma escala para apurar o grau de senescência das folhas que se despenharam, deixando as árvores paradoxalmente despidas para aguentarem a estação mais severa. É uma empreitada solitária. Não tem correspondentes e não divulgou o seu labor. Não lhe importa saber se o seu espólio vai ser aproveitado depois de morrer. Inspirou-se na metáfora das folhas outonais: elas devolvem um esplendor inédito quando são acompanhadas pela decadência. Não se importam com o que sobra depois da sua extinção. 

10.9.24

O lugar onde não havia psicólogos

Radiohead, “Bloom” (from the basement), in https://www.youtube.com/watch?v=D2084nQbmvk&list=PLukmsaXDPJifXCo9iXVPnzlXJ5gP2V_Fs

Neste lugar não havia psicólogos. Ou os que há estão todos desempregados: este era um lugar que dispensou os psicólogos (e a sua ramificação dada às piores patologias da alma, os psiquiatras). 

Uns emigraram, partiram em demanda de lugares outros onde as pessoas são ensinadas a precisarem de psicólogos. Outros dedicaram-se a outras artes, numa obrigatória reconversão para não ficarem à míngua de recursos que pudesse comprometer a sua sobrevivência. Uns poucos entregaram-se ao ócio, usufruindo do subsídio de desemprego, entrecortado com biscates de diverso recorte; estes foram os que sempre recusaram as outras duas soluções, como quem evitava fazer concessões aos estudos em que tanto se empenharam. Estes seriam os que mais precisavam de psicólogos, se naquele lugar ainda houvesse psicólogos outros que não eles.

Este lugar dispensou os psicólogos porque as pessoas aprenderam, desde os bancos da escola, que as condições para não terem de recorrer a psicólogos partiam de dentro de cada um. Dependiam da sua vontade, da força mental interior, da capacidade para não treslerem condições pessoais, não se entregando a um suicidário exercício de angariação de angústia, melancolia e desespero. Quando esta tábua de salvação interior começou a ser ensinada nas escolas e pregada em casa, não foram os psicólogos que tiveram o encargo. As pessoas começaram a perceber que não precisavam de psicólogos. 

Os psicólogos quase foram a tempo de emendar a nova política. Reagiram com contundência, acusando os pedagogos influentes de serem responsáveis pela delapidação da saúde mental de gerações inteiras (e já contavam com as gerações futuras, adivinhando a decadência que lhes estava fadada). Socorrendo-se da argúcia típica do causídico mais palavroso, montaram cenários apocalípticos: se os psicólogos deixassem de ser precisos, as pessoas viveriam num lugar sorumbático e decadente, deixariam de confiar umas nas outras, e este seria um lugar onde os suicídios rivalizariam com os países nórdicos (ainda que por diferentes razões). 

O que nunca se soube é se esta argúcia retórica era apenas uma prova de vida para o futuro ou se os psicólogos estavam convencidos que dispensá-los seria um erro. Muitos, dos que observaram o fenómeno, inclinam-se para a segunda hipótese. Termos em que se concluiria que quem mais precisaria de psicólogos eram os psicólogos.

9.9.24

Já não há imperadores (short stories #470)

Gorillaz, Clint Eastwood”, in https://www.youtube.com/watch?v=1V_xRb0x9aw

          Ouviu a expressão “tirar o cavalinho da chuva”, era um possivelmente pai a informar o possivelmente filho que não havia cabimento a um possivelmente capricho. O petiz, esbracejando uma birra depressa extinta, engoliu a lava da má criação quando o pai dirigiu um olhar que entrou pelo seu olhar fundo. Fez-se silêncio, para agradecimento dos populares limítrofes que, mal o rapaz acentuou a curva dos decibéis ao abrir os pulmões em ajuda do berro misturado com pranto para ver se convencia o pai, as pessoas à volta logo dirigiram o olhar para a birra tonitruante. O rapaz deu conta, era ele no centro das atenções ali no centro da praça no centro da cidade, e toda esta roda gigante centrípeta foi o remédio suficiente para o silenciar. (Haveria de se confirmar, no devir que haveria de chegar, que o rapaz, já então feito homem de barba rija, detestava ser o centro das atenções.) Foi a atenção de todos os olhares à volta que convenceu o rapaz a “tirar o cavalinho da chuva”. É fresca a moda de não incomodar as vontades dos mais novos, sob pena de se declarar um choro com perímetro mundial e a poluição sonora se traduzir numa vergonha para os pais, nunca para os filhos que não se importam de flanar por tristes figuras diante do público. Dantes, as crianças não eram imperadores e imperatrizes. De acordo com este modismo hodierno, os mais novos depressa se investiram no papel de imperadores; e os seus pais, obedientes suseranos, condenados a pagar as vontades, caprichosas ou não, patenteadas pelos petizes. Naquele dia, ao dizer “tira o cavalinho da chuva”, aquele possivelmente pai repôs a ordem dos fatores. Sem chamar a si o estatuto de imperador (a monarquia caiu em desuso e os impérios ainda mais), devolveu o possivelmente filho à sua condição de filho.

6.9.24

Uma eleição que serve para acertar o compasso político

The Jesus and Mary Chain, “Far Gone and Out” (live at Letterman Show), in https://www.youtube.com/watch?v=xDakJOJnqn0

Este texto não é sobre militância apaixonada a propósito da eleição presidencial nos Estados Unidos (EUA). Não acompanho os argumentos de alguns letrados que defendem a legitimidade de qualquer cidadão, seja qual for a sua nacionalidade, para opinar sobre as eleições presidenciais daquele país. Por mais que se reconheça o privilégio exorbitante dos EUA na política mundial, o principal requisito formal de participação nas eleições (ter nacionalidade dos EUA) liquida à nascença a viabilidade dessa tese peregrina. Fora do argumento a sua legitimidade exaure-se, sobrando as posições subjetivas de cada um no perímetro da liberdade que lhes assiste. 

Esta eleição pode ser importante para a reorientação do compasso político de cada um. Para além dos efeitos internos que a eleição naturalmente produz, ela pode ter uma projeção que transcende as fronteiras dos EUA. As ideias que se seguem obedecem a esta premissa. Volto ao pressuposto: as minhas posições – as posições de todos nós somados – são irrelevantes para a geografia eleitoral dos EUA. Não são irrelevantes para a forma como nos situamos na paisagem política mundial, europeia, nacional e local. Aí, neste entrecruzar de feixes geográficos, joga-se muito do nosso presente e futuro. 

Para alguém que se situe na direita moderada e sem dúvida democrática, a eleição presidencial estadounidense de novembro de 2024 oferece um tabuleiro onde se movem as peças que determinam a redefinição do compasso político. Antes da emergência da extrema-direita, da direita radical, ou da direita populista (no resto do texto passo por cima das diferenças, utilizando os rótulos como sinónimos uns dos outros), ficava transtornado com a pose de superioridade moral das esquerdas. Antes de a direita radical ter conquistado significado eleitoral, e antes de ter voltado a exercer o poder em alguns países (sozinha ou em coligação), acreditava-se que o vírus do autoritarismo de direita tinha sido expurgado pelas lições da História. A voz dominante era condescendente com partidos de extrema-esquerda ou de esquerda radical que nunca se afastaram dos crimes contra a humanidade perpetrados na URSS, na China, no Camboja, na Coreia do Norte, em vários países africanos seduzidos pelos herdeiros de Marx, Lenine e Estaline. Diante destes (maus) pergaminhos, as comendas democráticas que os partidos de esquerda radical auto encomendavam, perante a complacência do pensamento dominante, eram infundamentadas. 

Agora que a extrema-direita voltou a brandir bandeiras que ameaçam o regime demoliberal, as tentativas avulsas de equivaler partidos de extrema-esquerda e de extrema-direita (pela ameaça de autoritarismo e por causarem uma crise existencial da democracia) continuam a ser recusadas pelo pensamento dominante. Muito embora continue a defender que a sobrevivência da democracia está em causa com a extrema-direita e a extrema-esquerda, os fantasmas agitam-se mais depressa quando a extrema-direita ganha visibilidade e ameaça governar ou influenciar a governação com o beneplácito dos caprichos da aritmética eleitoral. Os medos espalhados ajudam à “re-normalização” das esquerdas radicais: estão na vanguarda do combate político à extrema-direita; fazem-no para se oporem à extrema-direita, mas socorrem-se de um argumento que ajuda à sua normalização: é um combate imperativo, pela defesa da democracia. Eis o paradoxo, em toda a sua pujança.

Outro fenómeno que causa apreensão é a migração para a direita radical de pessoas que eram militantes ou simpatizantes de partidos de direita moderada ou de centro-direita. Alguns tiveram a honestidade de sair do armário, descobrindo-se que a militância de outrora não se fundamentava na adesão ideológica. Não se conclua apressadamente que só agora que se juntaram às fileiras da extrema-direita é que manifestaram a sua linhagem ideológica: se esse comportamento retrata a motivação de alguns militantes da direita radical, outros haverá que o fizeram por mero oportunismo. 

Para os propósitos deste texto, pouco interessa saber a motivação destas migrações político-partidárias. Importa reconhecer que muita gente deixou de ser moderada e se encostou a lugares políticos radicais. Alguns esgrimem o argumento (a meu ver indefensável) que as direitas devem cerrar fileiras para se oporem às esquerdas, argumento que os coloca ao mesmo nível das esquerdas que se uniram sob o largo chapéu da geringonça. Na altura criticaram o PS, julgaram (erradamente) ilegítima a formação do primeiro governo de Costa apoiado num entendimento pós-eleitoral com as esquerdas à sua esquerda; agora tiveram o mesmo comportamento que criticaram aos socialistas.

Outro efeito que causa perplexidade é a polarização. Agora há extrema à direita e à esquerda. A polarização tende a alimentar mais polarização, pois a luta política passa a ser um feixe de emoções que ateiam o acinte, a inverdade, o ataque pessoal, a intolerância, a incapacidade para ouvir e debater com o adversário, a infantilização do discurso, a manipulação grosseira. Aqui, a direita radical leva a palma, ultrapassando a esquerda radical. A paisagem política atual é um laboratório vivo: o acantonar de posições em torno de ideias, propostas e decisões conservadoras, como se fosse importante fazer recuar o tempo; a desinformação e a mentira sobre o oponente como instrumento de fidelização de lealdades; a tresleitura das ideias, das propostas e das decisões dos adversários; o ensimesmar nacional e a intolerância com o outro (o outro como imagem dos outros países, dos migrantes e dos refugiados), numa lamentável amálgama que omite as lições da História; a pose e o discurso pueril de alguns porta-estandartes destas direitas que se radicalizaram (quando ouço e vejo Trump, soa-me a alguém que tem a estrutura mental de uma criança que frequenta a escola primária).

Perante este cenário, é compreensível que quem seja de direita moderada (e não tenha sido enfeitiçado pelo canto de sereia da direita radical) esteja mais longe da direita radical do que do centro-esquerda – sem que isso dite a deslocação do compasso político na direção do socialismo democrático. A radicalização destas direitas motivou a revisão do compasso político: os efeitos de polarização afastaram a direita moderada dos lugares à sua direita, sem se aproximarem dos lugares à sua esquerda.

Estes são tempos em que fazem falta radicais de centro.

5.9.24

Duly noted (short stories #469)

Mdou Moctar, “Imouhar” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=R0hxuCf8z6k

Um olhar que mais parece um sublinhado, a grosso. Acompanhado de um silêncio invasivo; às vezes, até as palavras cheias de arestas, aquelas que vão doer no magma, provocam menos dano do que este silêncio somado ao olhar que trespassa de medo. É como se o olhar censório fosse um camartelo escondido que torpedeia os alicerces. Ao menos, pelo tempo que demorarem os efeitos telúricos do olhar camartelo, todos os demais contratempos entram em hibernação. De tão inquisitivo, por ser tão incisivo e descer ao mais profundo âmago, o olhar enfático dissolve as outras arrelias por algum tempo. Às vezes convém ser vítima desta censura transversal. Se a vítima do olhar camartelo cuidar da lucidez, ninguém se admire que tenha intencionalmente criado a oportunidade para ser fulminado pela voltagem emocional do olhar tão sublinhado de um silêncio que se substitui às palavras mais pungentes. A lucidez compara os custos e a oportunidade: se a devastação do olhar fulminante servir como agente dissolvente das outras arrelias, esta é uma rosa cheia de espinhos que as mãos não se importam de carregar. Por mais que elas sangrem, é um sangue-lágrimas que disfarça o demais, um corretivo à sucessão de pequenas arrelias que deixam de o ser. Às vezes, um sismo tonitruante compensa todas as pequenas feridas abertas e o rosário de cicatrizes embutidas na pele. Remexe nas fundações, anestesiando as feridas e as cicatrizes, que passam a ser meras tatuagens. Ao fundo do tempo, em vez de à angústia ser permitida caução, o olhar contundente traz um silêncio cheio de palavras pressentidas. Pode durar breves segundos, mas parece que se arrastou pelas semanas fora. As semanas em que o resto perde as rédeas do tempo. A grande contrariedade drena as pequenas, levando-as à extinção. Perante o olhar mortífero, a resposta tão interior como silenciosa: “duly noted”.

4.9.24

Homem, a dias (short stories #468)

Royal Blood, “Little Monster”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fkpl5p4BVEA

         Aos dias inteiros, o homem furtivo sem saber como fazer uma voz convincente. O equipamento absoluto, nunca esquecido: os instrumentos sem os quais a empreitada está condenada ao vazio. Aos dias, o inteiro homem absoluto participa na abjuração das frivolidades. Escreve o manual de instruções, uma obra inacabada. Rasurada e acrescentada, sem ser nunca completa. Um homem-a-dias dos dias que não são perenes, prescritos na rosácea do tempo delimitado na tirana das convenções. Aos dias que se repetem, contrariando as convenções: dias a eito deviam ser tidos como um só dia se eles fossem uma unidade para efeitos narrativos. Que interessam as convenções? A cadência absoluta, sentida no batimento iterado do coração, bombeia o sangue válido que ateia os dias contínuos. Desta continuidade é homem, a dias. Há dias que se embebeu no avesso da alma e continua a rutura que é redenção de todos os arrependimentos de que se arrependeu. Aos dias, inteiros, oferece-se como voluntário da inventariação. Como se fosse o procurador de uma História à espera de ser enciclopédia. O homem faz-se por dentro da sua inteireza para tutelar o dia, só aquele dia, porque dos outros não cuida por estarem aquém da validade. As cordas de violinos gastas ainda têm serventia. Engastam nos baixios do dia, ainda por medrar, e o homem que é mecenas do dia protesta contra as luzes garridas que acenam indiscretas consumições. O atrito do tempo inflaciona as mãos. O homem tem dias, como todos. A dias, serve-se da fuligem arrancada aos confins da memória para desenhar com os dedos estrénuos as estrofes que desembaraçam a janela do dia. A boca ensina as palavras. Ensina o dia de que o homem quer ser embaixador. Ele, que tem o dia sob a sua alçada, subindo às rugas do dia antes que tenha perdido a validade.

3.9.24

Fora de serviço (II) (short stories #467)

The Smiths, “How Soon Is Now?”, in https://www.youtube.com/watch?v=33-5bsbQj-w

          A sentinela adormeceu. Oxalá o tempo rimasse com o seu sono negligente para, negligentemente, se suspender até notícia em contrário. Em vez disso, e atestada a manifesta impossibilidade de aldrabar o casco do tempo, simula-se a indolência, participando num concurso informal para descobrir quem consegue estar fora de serviço por mais tempo consecutivo. Não é danosa, a intenção: só os que apreciam a época de ócio com o consentimento da lei é que têm legitimidade para se entregarem à função. Um murmúrio toma conta do lugar mal se acende um néon onde se lê “fora de serviço”. As pessoas não escondem o seu incómodo, olham umas para as outras para sentirem se o desconforto do outro é mais vivo do que o seu. Até parece que estão a usurpar o tempo que alguém lhes outorgou. Depois percebem (apesar de não se reverem no arquétipo): estes são tempos do trabalho que é obrigatório e enobrece. Enraizou-se o espectro do trabalho que cerca as pessoas sem que elas se possam evadir da tirania suavemente instalada. Se descaem no ócio, mesmo que seja tutelado no horário não dedicado ao trabalho, o remorso toma conta delas: haverá sempre uma figura exemplar que responderá, em antítese com a folga do visado, que até o tempo é rarefeito para tanto trabalho entre mãos. É permitido estar fora de serviço, mas o código de conduta que passa de boca em boca e cinzela os comportamentos torna-o anátema. O estremecimento consumiu o burburinho que aterrou ao acender o néon com a inscrição “fora de serviço”. Ninguém disfarçou a impreparação para o ócio, com medo da reprovação do vizinho do lado. Quem percebe que a linguagem moderna tenha substituído o trabalhador pelo colaborador, se ao estarem sitiados pela obrigação permanente do trabalho as pessoas são coagidas na sua vontade?

2.9.24

Cal na pedra (short stories #466)

Portishead, “It’s a Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=7Y26KpgZknY

          A carne endurecida não protesta, os contratempos são selos que atestam uma validade. As paredes parecem puídas, mas é apenas a sua cobertura que foi estilhaçando à mercê da usura do tempo. É preciso caiar as pedras que, cruas, estão à mostra. Com as demãos que forem precisas. As frases precisam de armaduras, também. Quando se candidatam a ser escombros, quando são perdidas a favor de traduções que são uma farsa do seu sentido, quando desaparecem na impureza da desmemória, quando são sacrificadas às armas que terçam a usura. As frases também precisam de ser caiadas para não reincidirem na tresleitura, para que o seu propósito não seja perdido em motivos avulsos. Não se diga delas, e das paredes em que se amparam, que estão de pedra e cal, a elas sendo dedicado um lugar cativo. São frágeis, ainda que a sua formação petrificada dê a entender que são como couraçados, inexpugnáveis ao erro, uma precisa métrica que promove uma comunicação sem rasuras. Os olhos amolecidos pelo sono descaem na distração, tributam um irrealizável sentido de pureza que só os ingénuos atestam. Os puristas contestam o prognóstico: caiar as frases – seu é o arbítrio – é como adulterá-las, perdem o seu sentido espontâneo, as pessoas já não podem certificar que o que acabam por dizer é o que queriam dizer quando esboçaram a frase inaugural. Estão equivocadas. As palavras sentadas no estirador são sopesadas. Reescritas, umas; apagadas, outras; acrescentadas de palavras entretanto entradas em liça, outras. Caiar as frases não é uma presunçosa operação estética. Ambiciona a pureza possível, sabendo que a subjetividade tem termos que cancelam os propósitos de purificação. Em vez de perder as palavras para a decadência, fazem-se sentar no trono onde se são servidas da cal necessária. Ainda bem que a fonte é inesgotável.