6.9.24

Uma eleição que serve para acertar o compasso político

The Jesus and Mary Chain, “Far Gone and Out” (live at Letterman Show), in https://www.youtube.com/watch?v=xDakJOJnqn0

Este texto não é sobre militância apaixonada a propósito da eleição presidencial nos Estados Unidos (EUA). Não acompanho os argumentos de alguns letrados que defendem a legitimidade de qualquer cidadão, seja qual for a sua nacionalidade, para opinar sobre as eleições presidenciais daquele país. Por mais que se reconheça o privilégio exorbitante dos EUA na política mundial, o principal requisito formal de participação nas eleições (ter nacionalidade dos EUA) liquida à nascença a viabilidade dessa tese peregrina. Fora do argumento a sua legitimidade exaure-se, sobrando as posições subjetivas de cada um no perímetro da liberdade que lhes assiste. 

Esta eleição pode ser importante para a reorientação do compasso político de cada um. Para além dos efeitos internos que a eleição naturalmente produz, ela pode ter uma projeção que transcende as fronteiras dos EUA. As ideias que se seguem obedecem a esta premissa. Volto ao pressuposto: as minhas posições – as posições de todos nós somados – são irrelevantes para a geografia eleitoral dos EUA. Não são irrelevantes para a forma como nos situamos na paisagem política mundial, europeia, nacional e local. Aí, neste entrecruzar de feixes geográficos, joga-se muito do nosso presente e futuro. 

Para alguém que se situe na direita moderada e sem dúvida democrática, a eleição presidencial estadounidense de novembro de 2024 oferece um tabuleiro onde se movem as peças que determinam a redefinição do compasso político. Antes da emergência da extrema-direita, da direita radical, ou da direita populista (no resto do texto passo por cima das diferenças, utilizando os rótulos como sinónimos uns dos outros), ficava transtornado com a pose de superioridade moral das esquerdas. Antes de a direita radical ter conquistado significado eleitoral, e antes de ter voltado a exercer o poder em alguns países (sozinha ou em coligação), acreditava-se que o vírus do autoritarismo de direita tinha sido expurgado pelas lições da História. A voz dominante era condescendente com partidos de extrema-esquerda ou de esquerda radical que nunca se afastaram dos crimes contra a humanidade perpetrados na URSS, na China, no Camboja, na Coreia do Norte, em vários países africanos seduzidos pelos herdeiros de Marx, Lenine e Estaline. Diante destes (maus) pergaminhos, as comendas democráticas que os partidos de esquerda radical auto encomendavam, perante a complacência do pensamento dominante, eram infundamentadas. 

Agora que a extrema-direita voltou a brandir bandeiras que ameaçam o regime demoliberal, as tentativas avulsas de equivaler partidos de extrema-esquerda e de extrema-direita (pela ameaça de autoritarismo e por causarem uma crise existencial da democracia) continuam a ser recusadas pelo pensamento dominante. Muito embora continue a defender que a sobrevivência da democracia está em causa com a extrema-direita e a extrema-esquerda, os fantasmas agitam-se mais depressa quando a extrema-direita ganha visibilidade e ameaça governar ou influenciar a governação com o beneplácito dos caprichos da aritmética eleitoral. Os medos espalhados ajudam à “re-normalização” das esquerdas radicais: estão na vanguarda do combate político à extrema-direita; fazem-no para se oporem à extrema-direita, mas socorrem-se de um argumento que ajuda à sua normalização: é um combate imperativo, pela defesa da democracia. Eis o paradoxo, em toda a sua pujança.

Outro fenómeno que causa apreensão é a migração para a direita radical de pessoas que eram militantes ou simpatizantes de partidos de direita moderada ou de centro-direita. Alguns tiveram a honestidade de sair do armário, descobrindo-se que a militância de outrora não se fundamentava na adesão ideológica. Não se conclua apressadamente que só agora que se juntaram às fileiras da extrema-direita é que manifestaram a sua linhagem ideológica: se esse comportamento retrata a motivação de alguns militantes da direita radical, outros haverá que o fizeram por mero oportunismo. 

Para os propósitos deste texto, pouco interessa saber a motivação destas migrações político-partidárias. Importa reconhecer que muita gente deixou de ser moderada e se encostou a lugares políticos radicais. Alguns esgrimem o argumento (a meu ver indefensável) que as direitas devem cerrar fileiras para se oporem às esquerdas, argumento que os coloca ao mesmo nível das esquerdas que se uniram sob o largo chapéu da geringonça. Na altura criticaram o PS, julgaram (erradamente) ilegítima a formação do primeiro governo de Costa apoiado num entendimento pós-eleitoral com as esquerdas à sua esquerda; agora tiveram o mesmo comportamento que criticaram aos socialistas.

Outro efeito que causa perplexidade é a polarização. Agora há extrema à direita e à esquerda. A polarização tende a alimentar mais polarização, pois a luta política passa a ser um feixe de emoções que ateiam o acinte, a inverdade, o ataque pessoal, a intolerância, a incapacidade para ouvir e debater com o adversário, a infantilização do discurso, a manipulação grosseira. Aqui, a direita radical leva a palma, ultrapassando a esquerda radical. A paisagem política atual é um laboratório vivo: o acantonar de posições em torno de ideias, propostas e decisões conservadoras, como se fosse importante fazer recuar o tempo; a desinformação e a mentira sobre o oponente como instrumento de fidelização de lealdades; a tresleitura das ideias, das propostas e das decisões dos adversários; o ensimesmar nacional e a intolerância com o outro (o outro como imagem dos outros países, dos migrantes e dos refugiados), numa lamentável amálgama que omite as lições da História; a pose e o discurso pueril de alguns porta-estandartes destas direitas que se radicalizaram (quando ouço e vejo Trump, soa-me a alguém que tem a estrutura mental de uma criança que frequenta a escola primária).

Perante este cenário, é compreensível que quem seja de direita moderada (e não tenha sido enfeitiçado pelo canto de sereia da direita radical) esteja mais longe da direita radical do que do centro-esquerda – sem que isso dite a deslocação do compasso político na direção do socialismo democrático. A radicalização destas direitas motivou a revisão do compasso político: os efeitos de polarização afastaram a direita moderada dos lugares à sua direita, sem se aproximarem dos lugares à sua esquerda.

Estes são tempos em que fazem falta radicais de centro.

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