19.9.24

Farmácia

Jack White, “That’s How I’m Feeling”, in https://www.youtube.com/watch?v=A3neCOTqfj8

“E se em vez de esperarmos verdades finais que nos estarrecem, praticássemos activamente a esperança?” 

André Barata, in Ipsilon, 26.07.24, p. 31.

Deixemos de lado a inútil demanda da verdade. Deixemos de querer ocupar o lugar dos deuses, se aos deuses se aceitar a imputação das verdades finais. Sejamos cultores da esperança: uma bússola, mesmo que esteja desafinada, que colhe os ramos do futuro como sementes regadas pelas nossas mãos conspícuas.

É preciso interpretar o divórcio da verdade. Da verdade como ente absoluto e que fermenta na intransigência do seu contrário, um fogo estarrecedor que infecta tudo à sua volta. Para não sermos colonizados por uma vontade que, sem sabermos, nos é exterior. Para não alojarmos vestígios de uma imanência que não nos diz respeito. Não é que dispensemos os bons exemplos, que os há em barda no espaço limítrofe. Devemos ser criteriosos. Não tutelar verdades insofismáveis que se fazem passar por imperativos categóricos. Não sejamos reféns de contendas que aos outros dizem respeito. São o pressentimento das piores beligerâncias que envergonham a humanidade.

Em vez disso, a esperança que fala através das interrogações sistemáticas. As interrogações devem ser dirigidas aos patronos das verdades, aos insuspeitos advogados das certezas esfregadas no rosto dos outros com uma contundência arrogante. É uma esperança com pavio interminável. À medida que for trespassando perguntas atrás de perguntas, que for incomodando os procuradores de verdades à prova de contradição, que forem sobressaltando as almas domadas pela adesão ao conforto das convenções, a esperança alimenta-se a si mesma e de si mesma. Como se fosse um novelo feito de fios que aderem uns aos outros e crescem de geração espontânea, a esperança de saber contestar as verdades acastela-se num futuro que se promete luminoso. 

Enquanto houver pavio longo, e sobre ele adejar a promessa da intemporalidade, a esperança fica tatuada no magma profundo e invisível. Cobra os lugares habitados no tempo vindouro, como se fossem as portagens necessárias para saber haver lugar próprio da identidade do futuro. Não devemos ser timoratos na adesão à gramática da esperança. Teremos de ser agentes ativos, empenhados, como se ao úbere da esperança fôssemos beber o direito a sermos futuro. Sem o inconveniente das verdades que são satélites em nome dos contratempos que figuramos inúteis. 

A essas verdades, depostas pela esperança metodicamente ativa, destinemos a indiferença. O espelho avivado da esperança.

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