3.9.24

Fora de serviço (II) (short stories #467)

The Smiths, “How Soon Is Now?”, in https://www.youtube.com/watch?v=33-5bsbQj-w

          A sentinela adormeceu. Oxalá o tempo rimasse com o seu sono negligente para, negligentemente, se suspender até notícia em contrário. Em vez disso, e atestada a manifesta impossibilidade de aldrabar o casco do tempo, simula-se a indolência, participando num concurso informal para descobrir quem consegue estar fora de serviço por mais tempo consecutivo. Não é danosa, a intenção: só os que apreciam a época de ócio com o consentimento da lei é que têm legitimidade para se entregarem à função. Um murmúrio toma conta do lugar mal se acende um néon onde se lê “fora de serviço”. As pessoas não escondem o seu incómodo, olham umas para as outras para sentirem se o desconforto do outro é mais vivo do que o seu. Até parece que estão a usurpar o tempo que alguém lhes outorgou. Depois percebem (apesar de não se reverem no arquétipo): estes são tempos do trabalho que é obrigatório e enobrece. Enraizou-se o espectro do trabalho que cerca as pessoas sem que elas se possam evadir da tirania suavemente instalada. Se descaem no ócio, mesmo que seja tutelado no horário não dedicado ao trabalho, o remorso toma conta delas: haverá sempre uma figura exemplar que responderá, em antítese com a folga do visado, que até o tempo é rarefeito para tanto trabalho entre mãos. É permitido estar fora de serviço, mas o código de conduta que passa de boca em boca e cinzela os comportamentos torna-o anátema. O estremecimento consumiu o burburinho que aterrou ao acender o néon com a inscrição “fora de serviço”. Ninguém disfarçou a impreparação para o ócio, com medo da reprovação do vizinho do lado. Quem percebe que a linguagem moderna tenha substituído o trabalhador pelo colaborador, se ao estarem sitiados pela obrigação permanente do trabalho as pessoas são coagidas na sua vontade?

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