2.9.24

Cal na pedra (short stories #466)

Portishead, “It’s a Fire”, in https://www.youtube.com/watch?v=7Y26KpgZknY

          A carne endurecida não protesta, os contratempos são selos que atestam uma validade. As paredes parecem puídas, mas é apenas a sua cobertura que foi estilhaçando à mercê da usura do tempo. É preciso caiar as pedras que, cruas, estão à mostra. Com as demãos que forem precisas. As frases precisam de armaduras, também. Quando se candidatam a ser escombros, quando são perdidas a favor de traduções que são uma farsa do seu sentido, quando desaparecem na impureza da desmemória, quando são sacrificadas às armas que terçam a usura. As frases também precisam de ser caiadas para não reincidirem na tresleitura, para que o seu propósito não seja perdido em motivos avulsos. Não se diga delas, e das paredes em que se amparam, que estão de pedra e cal, a elas sendo dedicado um lugar cativo. São frágeis, ainda que a sua formação petrificada dê a entender que são como couraçados, inexpugnáveis ao erro, uma precisa métrica que promove uma comunicação sem rasuras. Os olhos amolecidos pelo sono descaem na distração, tributam um irrealizável sentido de pureza que só os ingénuos atestam. Os puristas contestam o prognóstico: caiar as frases – seu é o arbítrio – é como adulterá-las, perdem o seu sentido espontâneo, as pessoas já não podem certificar que o que acabam por dizer é o que queriam dizer quando esboçaram a frase inaugural. Estão equivocadas. As palavras sentadas no estirador são sopesadas. Reescritas, umas; apagadas, outras; acrescentadas de palavras entretanto entradas em liça, outras. Caiar as frases não é uma presunçosa operação estética. Ambiciona a pureza possível, sabendo que a subjetividade tem termos que cancelam os propósitos de purificação. Em vez de perder as palavras para a decadência, fazem-se sentar no trono onde se são servidas da cal necessária. Ainda bem que a fonte é inesgotável.

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