30.8.24

O esconderijo dos morcegos (short stories #465)

Tricky, “Christiansands”, in https://www.youtube.com/watch?v=0vtRiHt73iY

          Às vezes, a noite não amedrontava. Os olhos escurecidos combinavam com os vultos que disfarçavam a noite de medo, mas os olhos albinos precisavam de refúgio. Aprendessem com os morcegos, resguardados nos seus anónimos castelos para não serem derrotados pelo excesso de melanina. Ao menor sinal de penumbra, os morcegos libertavam-se da hibernação diária – e aqui a palavra era substantiva e adjetiva ao mesmo tempo – e cozinhavam coreografias desorganizadas, como se precisassem de consagrar a liberdade e a ela tivessem de associar o desmaiar da luz solar. Os morcegos não estavam sintonizados com as pessoas: no instalar da penumbra, as pessoas começam a desligar da corrente e processam a preparação para o descanso e o sono. Os morcegos só não estavam desemparelhados dos boémios, que tinham a noite como morada e dormiam de dia sem se preocuparem com a censura dos habilitados para o trabalho (dizem, em abono dos lugares-comuns, os responsáveis). Talvez os morcegos também fossem irresponsáveis. Só não contribuam para a indústria da boémia e as indústrias satélites que a acompanham nas desoras e na mundanidade. A cegueira dos morcegos ultrapassava o simbolismo: na preparação das metáforas, os morcegos eram os pares ideais para as congeminações da boémia e dos seus intérpretes. Ao contrário dos boémios, os morcegos não se arrastavam no dia seguinte, não sentiam o peso exacerbado da cabeça, as entranhas incendiadas, a vontade de não ter vontade de fazer o que fosse. A noite reanimava-os. Sentia-se o alívio dos morcegos quando o dia ia para inventário. E a indiferença das pessoas em geral, já por conta da apatia de quem começa a desligar da corrente antes de ser refém do sono que conduzia ao dia seguinte. Durante o dia, os morcegos eram parceiros dos boémios. À noite separavam-se os seus caminhos.

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