The The, “Some Days I Drink My Coffee by the Grave of William Blake” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=ReMPhU4Wp94
É cedo. O horário de trabalho pode esperar. O torpor arrasta-se pelas ruas, diante da luz inaugural. Um homem passeia o cão no jardim. Outro corre pelas ruas da cidade (e como é possível alguém correr àquela hora?). Se chegar atrasado quinze minutos, não acontece nada. E se o atraso for de meia hora? Nunca se sabe o estado de humor do chefe. Como se diz, “é de luas”. No escritório, especula-se com o estado de humor do chefe de acordo com uma linguagem cifrada, para ele não entender. E depois especula-se sobre o que poderá ter motivado um humor lunar ou um estado pré-depressivo. Nunca tem humores moderados, o chefe.
Na carruagem do metro, alguns dos rostos habituais. A maioria dos rostos são anónimos – ele há muita gente a habitar a cidade grande. Há quem dormite, aproveitando os solavancos do metro para embalar o derradeiro sono (ou o sono que ficou por dormir), apesar da estridência das rodas ao friccionarem os carris. Uma rapariga lê literatura de cordel, um daqueles autores consagrados sem ser pela qualidade literária (autores da moda, portanto). Outra vai imersa nos auriculares, esboçando uma coreografia agitada só com a cabeça e a perna direita. Passa um cego a mendigar, tateando com a bengala para abrir caminho entre os passageiros que não arranjaram lugar sentado. A voz feminina e radiofónica anuncia a próxima estação, em versão bilingue: “Braço de Prata”.
Quem teria tido um braço de prata, que prótese rara teria sido entranhada no seu braço decepado? Sabe: o braço de prata é um lugar, não é sobre uma pessoa. É aquele lugar do estuário que se alarga, como se o rio se desdobrasse num braço longo que fica à mercê do sol e ganha a forma de um espelho prateado quando o vento faz tréguas e o caudal fica açudado. Para passar o tempo e obliterar dos sentidos os solavancos da carruagem, não faz mal fantasiar. Ninguém pode ser acusado de delírios criativos.
Por ser segunda-feira, a vontade de ir para o escritório é menor. Seria assim se trabalhasse noutro lugar? E se mudasse de ramo e não trabalhasse num escritório, para passar a jornada de trabalho como se fosse um nómada? A especulação ajuda a matar o tempo (que expressão mal inventada!). Ajuda a fingir que o tempo fugiu entre os dedos, só para ter um pretexto para os quinze minutos de atraso que nunca são contados como tal.
Os passos arrastados estão por conta do arranque cambaleante da semana. Na rádio, logo pela manhã, o locutor tecia o habitual lamento quando inaugura a semana (“temos uma longa semana pela frente”), mas lembrou, para o caso de a alguém ficar esquecido, que a meio da semana havia um feriado. “Assim custa menos a semana”, vaticinou, com o habitual desdém pelo trabalho.
Nunca entendeu estes comprimidos de iodo que uns tomam para só saberem trabalhar e outros tomam como vacina do sacrifício que é ir para o trabalho. Ele só queria ter direito a meia hora de atraso aceitável sem ter de aturar os humores variáveis do chefe. Sempre considerou que se satisfaz com pouco.
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