Deftones, “Rocket Skates”, in https://www.youtube.com/watch?v=woR6ohiFeYE
“God shave the Queen”, João César Monteiro, in A Comédia de Deus
Ora: enumera os garfos perdidos no arrozal, enquanto os operários labutam de cabeça baixa – na injusta imagem que os realistas com certa linhagem ideológica denunciam, só para confirmar a teoria da luta de classes. Enumera todas as opressões que tornam profundamente injusto o mundo, como se deus (se existisse) conspirasse com esta linhagem ideológica para provar que os pressupostos de que partem quadram com o quadro de profundas injustiças que emoldura o mundo.
Depois: conta os automóveis vermelhos que se cruzarem contigo na autoestrada até a Lisboa. Saberás, então, porque os comunistas andam em baixa nas preferências do eleitorado, o que acaba por conspirar contra deus, na sua santa aliança com esta linhagem ideológica, pois dezanove em cada vinte pessoas que vão às urnas não acreditam no cenário apocalítico que serve a santa aliança.
A seguir: desvia o olhar para aspetos mais mundanos (por mais que os contraries, eles fazem parte do mundo em que habitas, ou não se chamassem mundanos). Observa o chinês que come sem modos o pequeno-almoço e recorre aos galões multiculturalistas para dares o devido desconto: comer com a boca aberta, em ruidosos movimentos dos maxilares que soam a poluição sonora (e visual; e a um quadro absolutamente inestético) fará parte da cultura do chinês. Não o deves abjurar. Desvia outra vez o olhar: a senhora sexagenária que estava na mesa do lado já terminou o café e “fazia horas” (como se costuma dizer, na tirania das expressões idiomáticas) para começar a lida da casa onde trabalha. Levantou-se e foi comprar um maço de tabaco e três raspadinhas, que avidamente raspou com uma unha pré-encardida, a que se seguiu a compra de mais três raspadinhas. A atenção divina anda afastada da senhora. E é indulgente com o chinês, liberto de uma convenção social de que está dispensado.
Mais tarde: observas uma artista circense que faz acrobacias com uns pinos enquanto o semáforo está vermelho, para ganhar o pecúlio do dia ao colo da generosidade das pessoas que esperam pelo semáforo verde. Quase ninguém contribui. A generosidade não está em alta na bolsa de valores dos valores. As pessoas querem que a luz verde substitua a vermelha, o mais depressa possível.
Antes que seja tarde (não percebes porque dizes, como se fosse uma auto advertência, “antes que seja tarde”): já é noite, num entardecer prematuro, e um homem de meia-idade corre pela avenida fora. Os carros deslocam-se mais depressa, apesar das filas de trânsito. Nem assim o homem desiste e continua a correr, impassível, isolado do resto do mundo, no mergulho sistemático nos auriculares. Não é preciso muito para sermos ilhas no meio da multidão. Mas não contem este segredo da misantropia militante, que os adeptos da condição gregária podem ficar indispostos.
Rescaldo do dia: corremos todos, mesmo os que não sabem, uns atrás dos outros, uns contra os outros, uns com os outros. No auge da diferença entre todos nós, as velocidades são desiguais.
Se calhar, Marx estava certo e deus inspirou-se nele.
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