Ryuichi Sakamoto, “Aqua”, in https://www.youtube.com/watch?v=gSuHD4jzNJ0
O piano tinha direito a um pequeno púlpito, meia dúzia de degraus acima do chão do átrio do hotel. Estava impecavelmente polido, como se alguém tivesse acabado de engraxar um par de sapatos. As pessoas abeiravam-se do piano. Circundavam o piano. Algumas tocavam levemente o piano com uma mão, extasiadas pelo instrumento que era centrípeto.
Não se podia dizer que o piano atraía as pessoas por causa das luzes feéricas do lugar. A gerência do hotel preferiu que as luzes fossem baças, o que causava ainda mais admiração nas pessoas que visitavam o piano: se houvesse luzes mais pujantes, imagine-se a cintilação que o piano emitiria.
Perto da cauda do piano, uma pequena placa continha informação para os interessados:
Ryuichi Sakamoto tocou no piano durante a sua estadia neste hotel.
Para quem soubesse quem era Sakamoto, o piano tornava-se um ícone. Não era de estranhar que a gerência do hotel tenha promovido o piano a um lugar de destaque. Mas o piano não estava naquele lugar quando Sakamoto desceu do quarto, numa noite de insónia, e abriu a tampa do piano para dedilhar umas notas, ao início, ganhando a confiança no piano ao ponto de ter estado meia hora a falar com ele através da música. Era noite funda. Apenas um punhado de funcionários que estavam de serviço e alguns hóspedes que chegaram a más horas ouviram a récita improvisada e improvável de Sakamoto. Não se soube quantos deles saberiam quem era o pequeno japonês que tratava o piano do átrio do hotel por tu.
O gerente do hotel soube no dia seguinte. Ninguém soube dizer se o pianista era de circunstância, um amador todavia com dedos destros no piano, ou um pianista profissional. O gerente, que fizera formação em música clássica, correu os dados dos hóspedes. Encontrou o nome de família “Sakamoto”, seguido do nome próprio “Ryuichi”.
O gerente do hotel não se perdoou ter trocado o turno da noite com o subgerente. Devia ter sido ele a fazer o turno, mas estava cansado e pediu ao subgerente que ficasse na sua vez. Perguntou na receção se alguém se tinha ido ao piano depois de Sakamoto. Disseram que não. O gerente encaminhou-se para o piano, puxou discretamente o banco atrás enquanto levantava o tampo do piano com a mão livre. Os dedos passearam pelas teclas que horas antes tinham sido massajadas por Sakamoto. E o gerente, quase por osmose, sentiu-se Sakamoto por uns instantes. O Sakamoto que não conseguiu ser, antes de ter feito carreira na hotelaria.
Quanto ao piano, foi entronizado. Ao gerente do hotel ainda passou pela cabeça a ideia de tornar inacessível o piano, para que as pessoas não dissipassem os restos de Sakamoto que ficaram a fazer parte do ADN do piano. Mudou de ideias. As pessoas que soubessem quem era Sakamoto tinham o direito de tocar no piano onde o músico tinha tocado.
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