28.11.24

Suficiente menos

The Cure, “A Fragile Thing”, in https://www.youtube.com/watch?v=tRGYtDdgmLA

Leio os lábios: intriga-me que alguns jogadores de futebol, enquanto cumprimentam os adversários antes de o jogo começar, lhes desejem “bom jogo”. Fico intrigado, mas não devia. Com o mundo no estado em que se encontra, aqueles votos têm muito de insincero. O mundo nosso não é um lugar de lisura, muito menos quando alguém deseja ao adversário, num contexto tão competitivo como é o desporto, o contrário do efeito desejado. O desporto não guarda nada do espírito olímpico original. Perpassa a ideia que no desporto-negócio, que está a substituir o desporto-paixão e o desporto identitário, todos os meios são válidos para atingir os fins. Desejar “bom jogo” ao adversário é dito da boca para fora, uma alocução mecânica que verte um módico de fair play, só para fazer de conta.

Ou será que desejar “bom jogo” é um enfeite para enganar o adversário – como se o hipnotizasse com tão boa educação? Não será, pois o adversário estará formatado para retorquir na mesma moeda. Quando dois adversários desejam reciprocamente “bom jogo”, estão a caminho de um empate que não tem por onde se desatar. Esta franqueza, uma máscara vestida por imperativos de boa educação desportiva, traz um impasse. Um “bom jogo” ao quadrado, que sirva aos dois adversários que desejam um ao outro que bom seja o seu jogo, pende para o menor denominador comum. Como se os dois se contentassem com um suficiente menos, porque é, ao menos, um suficiente. Quando todos empatam, ninguém ganha. Mas, ao menos, ninguém perde. É um contrassenso desportivo. 

Os que conhecem o desporto contemporâneo sabem que a competitividade levada ao limite, com a usura dos que se socorrem de métodos reprováveis para chegar ao olimpo e a recorrência de ardis que falsificam o fair play, está nos antípodas do verniz de educação entoada quando se deseja um “bom jogo” ao adversário. Dir-se-á que os votos de “bom jogo” endereçados ao adversário têm de ser lidos no contexto: quando um desportista formula esses votos, eles traduzem-se no seguinte: “desejo-te bom jogo, que não te magoes,” – porque ainda há uma ética profissional entre pares que não tolera danos à integridade física – “que o teu bom jogo não seja suficiente para que o meu seja melhor do que o teu e que não impeça que a minha equipa vença a tua.”

O desporto é a imagem acabada da política, desde a doméstica à internacional: um rosário de proclamações bem-intencionadas que raramente quadram com as concretizações. Fica bem prometer boas promessas, ou dizer o que cai bem no goto da audiência. Depois, funciona má memória das pessoas: entre a panóplia de proclamações bem-intencionadas que transbordam para o espaço público e as preocupações do dia-a-dia das pessoas, as promessas alinhavadas no pretérito depressa ficam condenadas ao esquecimento. Não há prestação de contas do que foi dito no passado.

As palavras diplomáticas são ditas porque fica bem serem ditas. Mas não significam nada. São parte de uma retórica vazia. Não há amigos quando o desporto tão competitivo é o palco onde desfilam adversários que por vezes se transfiguram em inimigos. E entre inimigos, não há ética que lhes valha.

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