Massive Attack, “Live With Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=o_mi7rD-_9c
Aos interessados, gente não órfã de passado e, todavia, ambicionando exibir um, magnífico e exemplar, que seja diferente do seu; gente arrivista que não saiu da cepa torta e, insatisfeita com o que lhe foi reservado pelo destino (ou pela indolência; ou por uma conjugação de circunstâncias que jogou a seu desfavor, real ou imaginada), quer ostentar pergaminhos só possíveis com a reconstituição do seu passado; gente que se acusa vítima de injustiças avulsas, ou atingida por várias marés de infortúnio; e gente já instalada mas grávida de ambição, com uma sede irreparável de craveira que os eleve a outro patamar. Aos interessados, estes e de outras linhagens elegíveis, o anúncio altissonante: vendem-se passados.
Vendem-se passados de gente desinteressada no passado seu; de gente que deixou de existir e lavrou em testamento a vontade de transmissão de parte ou de todo o seu passado; de gente, ora altruisticamente motivada para melhorar a vida dos outros, ora mercando o passado em fragmentos ou na totalidade contra um pagamento correspondente.
Desenganem-se os conservadores que advertem, agarrados às convenções que funcionam como sua boia salvadora, que o passado é pessoal e intransmissível. Insistem: o passado está colado à pessoa que o titula, não pode ser transferível para outra pessoa. Estes conservadores têm de ser repudiados: ele há tanta gente que aspira a ser diferente de quem é, que a sua vontade só se autentica se conseguir vestir um passado que lhes foi transmitido por ato, gratuito ou oneroso, de outrem. Não podem travar as ambições dos que querem ser maiores do que o seu próprio espelho anuncia.
As pessoas têm legitimidade para não estarem contentes com quem são. Devem poder ambicionar a ter outra, maior, estatura da que arcam. Dantes, falsificavam-se credenciais, materializando mentiras negras que arrastavam consigo o ónus do indesculpável. Retificar a propensão para esta mentira grave consegue-se através da legitimação de uma mentira que tem uma gravidade menor: merquem-se passados, que deixam de ser pessoais e intransmissíveis, e seja saciada a teima de muitos serem de uma grandeza que o seu passado não caucionou.
A seguir, mude-se o nome deste lugar para república popular da mentira.
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