Bonobo, “Shadows” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=qPn1FBvQh-k
Viram? O peão avançou uma casa. Se quisesse saltar umas casas pelo caminho, não podia, as regras não deixavam. Já o cavalo move-se três casas, desde que uma seja numa direção e as outras duas noutra direção. Um cavalo vale mais do que um peão.
Ou então desmistifica-se a comparação. É apenas um jogo de xadrez, não é preciso chegar a conclusões impróprias. O xadrez pode ser uma metáfora, mas é só uma metáfora. As metáforas são exercícios estilísticos que podem ajudar a perceber o que se passa à nossa volta, mas não reproduzem o contexto como se fossem um padrão fidedigno. Ou podia-se amortecer a rudeza da comparação – quem é que se lembraria de trazer um cavalo para o palco onde a pessoa quer ser comparada? – lembrando que o cavalo tem uma passada mais comprida do que a pessoa. Por isso, três casas de cada vez.
Se à metáfora se regressar, tanto é possível sugerir que o xadrez é profundamente antidemocrático como desvalorizar o jogo como representação do mundo em que nos movemos. Em abono desta posição, não é legítimo extravasar de um jogo para o mundo, pois um jogo é apenas um jogo. Se se alinhar pela primeira posição, anotam-se as limitações aos movimentos dos peões, compara-se com os movimentos do cavalo, e a tempestade perfeita aterra no horizonte: ao povo não se deixa avançar mais do que ao cavalo. O cavalo tem mais direitos do que o povo.
O xadrez é o selo das desigualdades que continuam a tatuar a pele social. Os bispos podem-se mover na diagonal num número de casas que só depende da sua vontade. As torres – a personificação do exército – movem-se quase como os bispos, só que não podem saltar casas na diagonal. Só a rainha se move quantas casas quiser, na diagonal, na vertical, ou na horizontal. Quem inventou o xadrez era clerical e a favor da monarquia.
É quando se observam as movimentações do rei que o diagnóstico que a democracia inerente ao xadrez sofre um retrocesso – e um retrocesso destes representa um avanço social. O rei só se movimenta uma casa de cada vez na diagonal, na horizontal, ou na vertical. Ou o rei está obeso e anafado e, cansado de tanto exercício que implica avançar uma casa, senta o abundante corpo na primeira casa à mercê.
Afinal, o xadrez não é antidemocrático. Acolhe um rei sedentário e os peões também sedentários. Quanto à latitude dos movimentos, não há grande diferença entre o rei e os peões. O rei desce do pedestal para celebrar a soberania do reino junto dos anónimos peões. E estes, nem que seja por um dia, convivem com o rei descido às ruas. O xadrez ensina que as peças de um lado do tabuleiro são gregárias e falam umas com as outras. Mas não falam com as peças do outro lado do tabuleiro.
O xadrez pode não ser antidemocrático, mas é um livro aberto onde os beligerantes encontram casa para se guerrearem.
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