The Cure, “Endsong”, in https://www.youtube.com/watch?v=SOXsHJOhO7o
Caminhava no sentido do poente, para fazer a vontade ao dia. O crepúsculo descia sobre o céu tardio. A cidade começava a acalmar do bulício esquizofrénico. Parecia que o dia tinha esgotado os adjetivos. Um convite ao torpor delimitava o corpo, que começava a extinguir os vestígios de alma. Agora, estava quase a ser apenas um autómato, como se, diluída a vontade, sobrasse apenas o acaso que ditaria o tempo consecutivo.
Anoitecera quando um sobressalto povoou as imediações. Um troar belicoso, seco e assustador. Não era um sismo. Algo explodira. As pessoas começaram a correr de um lado para o outro. Umas, aturdidas, fugiam do lugar da explosão. Outras, acesas pela curiosidade, acorriam ao local, seguindo o rasto do estampido. As primeiras corriam, desamparadas e assustadas, algumas ensanguentadas pelo aleatório atear dos estilhaços. As segundas não conseguiam controlar o instinto de quem procura sofregamente as desgraças para delas ser testemunha.
Tinha havido uma explosão numa loja. Os vidros estavam todos estilhaçados. As paredes da loja ruíram. O que era a loja de meias era agora uma cratera. A polícia afastava os mirones e os bombeiros começavam a fazer o rescaldo, depois de extinguirem um incêndio que deflagrara. As ambulâncias chegaram mais tarde. Não havia vestígios de danos humanos, para além das pessoas que passaram na rua contígua a fugir do pânico, brevemente ensanguentadas pelos fragmentos projetados pela explosão. Os hospitais confirmaram que eram feridos ligeiros, nada que não fosse cuidado com meia dúzia de pontos, uns pensos e umas pinceladas de Betadine.
Só depois é que chegaram os serviços secretos. As gabardines escuras ostentadas por indivíduos circunspetos denunciavam a linhagem. Os modos rudes rimavam com a sisudez e as palavras telegráficas confirmavam o estatuto. Era preciso saber a origem da explosão. De acordo com os primeiros indícios, tinha sido uma bomba. Quem teria sido o autor da bomba e que protesto lhe era intrínseco?
Os mirones foram retirados da rua e das ruas limítrofes depois de os serviços secretos ordenarem à polícia para estabelecer um cordão de segurança de dois quarteirões. O tempo acalmou as memórias do episódio, tal como acontece quando o corpo começa a desligar assim que é invadido pelo crepúsculo que pressente a extinção do dia.
Meses depois, a revelação deu à estampa: a bomba foi colocada por indivíduos já identificados para os devidos efeitos e que estavam em parte incerta. Nesse mesmo dia, depois de revelada a identificação dos autores da bomba, a perplexidade não demorou a ser atendida. Um par de horas depois, um movimento desconhecido reivindicou o atentado e justificou-o: era um protesto contra o 25 de novembro, por, esse sim, ser um atentado contra a democracia que só pode rimar com os direitos do povo.
O Rossio demorou quase um ano até a voltar a ser o que era. As cicatrizes do atentado, essas, já vinham de trás. Sempre houve quem quisesse que a liberdade tivesse ficado pela metade. Já depois da História, conseguiram refazê-la sem efeitos retroativos. Sem saberem, ou talvez apenas sem perceberem, reforçaram a razão à História.
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