Massive Attack, “Daydreaming”, in https://www.youtube.com/watch?v=JG9CXQxhfL4
Ouvia tantas vezes o desdém a bolçar quando diziam “fulano é um erro de casting”, ou, em variante mais incisiva, a que usa o discurso direito e atira sem contemplações, “és um erro de casting”, como se a entoação fosse a de quem constituía o destinatário como presa. Ouvia tantas vezes e, à falta de conhecimentos de inglês, não estendia a curiosidade para perceber o teor da abjuração.
Não devia ser coisa de somenos importância: um erro não é um elogio – interiorizava, enquanto fazia contas ao erro e desperdiçava esse tempo omitindo o significado de “casting”. Ainda por cima, sempre que ouviu bocas alheias a articularem iradamente aquelas três palavras, percebeu que, não sendo a menção feita em tom elogioso, o diagnóstico era pior por a acusação ser lancinante. Quando as palavras são ditas com agressividade, é de desconfiar das intenções do portador. Nunca se esquecera desta lição de vida avoenga.
Ouvira “erro de casting” na rua, na televisão, até numa peça de teatro à qual fora com uma amiga. Comentou o assunto com ela e confirmou, com a sua ajuda, que ela, que está muito mais atenta às voltas do mundo e é letrada, sabe que até nos jornais e na literatura a expressão saiu do anonimato. Aquela peça de teatro era uma “metanarrativa” (vinha na folha de sala, mas não perguntou à amiga, não fosse dar-se a revelar como inculto) sobre a contratação de figurantes para uma peça de teatro. Os candidatos desfilavam perante um júri e tinham de declamar um excerto significativo da peça. As falas eram um palimpsesto, uma peça de teatro que se passava dentro de uma peça de teatro. Percebeu pouco do enredo. O texto era complexo, uma labuta árdua para acompanhar o seu fio condutor. No fim da peça, antes de cair a cortina sobre o palco, a personagem que fazia de diretor do teatro sentenciou: “estou farto do casting”. Nem assim ousou perguntar à amiga o que significava a palavra.
Tempos depois, o chefe chamou-o ao escritório. “Se calhar vou ser promovido”, remoía no caminho, deixando exultar um otimismo que não era assíduo. O chefe vociferou umas palavras a uma velocidade estonteante, descrevendo um conjunto de erros que se deviam à, possivelmente, sua distração. Quem o mandava continuar a ser cabeça no ar! Depois de descarregada toda a artilharia e enquanto limpava umas gotas de suor que desciam pela fronte, o chefe rematou a conversa: “Não passas de um erro de casting, caramba!”. E ele perguntou, sintomaticamente: “O que é o casting?”, passando por cima do erro que não o incomodou.
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