22.1.08

Brincar às guerrinhas nos ares


Enquanto as gentes em terra ficam assustadas com o súbito ribombar que estilhaça vidros, abre fendas nas paredes, rompe com a tranquilidade campestre tão típica das terras de Penamacor. É que havia por ali manobras da força aérea, “exercícios de simulação de combate”, usando a linguagem de caserna. Não terá sido preciso alertar a protecção civil, muito menos pôr de aviso as populações. A tropa continua a usufruir de regalias incomparáveis. Um Estado dentro do Estado, ainda.

Imagino como deve ser doloroso para estes generais viver em tempos que deixaram de ser visitados tão amiúde pelas guerras. Entretêm-se, pois, a congeminar fantasiosos cenários de guerra, substantivando os conflitos em que gostariam de participar. Põem os homens no terreno, atribuem-se-lhes “missões”, inventa-se um inimigo fictício e acabam todos a brincar às guerrinhas. Para conferir maior solenidade à coisa, chama-se o ministro da tutela, veste-se-lhe um uniforme para abraçar o espírito de caserna e convocam-se as câmaras de televisão para mostrar à população que ela pode dormir em descanso: não haverá invasão que não sofra a brava resistência das nossas tropas. Mas que invasão estão a imaginar?! Justificam-se: há que manter “operacionais” os “efectivos”, não vá ser necessário pô-los em acção. Há quem viva a sonhar mesmo acordado.

Causa-me espécie que haja criaturas que fazem profissão de fé no aspecto lúdico das guerras em simulacro. Como pode alguém, no seu perfeito juízo, brincar às guerrinhas? De cada vez que generais ensaiam exercícios bélicos, é a humanidade a gritar bem alto o seu ensandecimento. Um cortejo grotesco em que se faz de conta que um inimigo imaginário ameaça a sacrossanta soberania pátria. O sangue teria que escorrer para defender a soberania que se deseja intangível. Não haverá bem maior. O que interessa se a tropa assim entretida se deita no leito do mais puro anacronismo? Por mim, que sempre me enterneci com exércitos e a férrea disciplina militar (que ainda dá direito à existência de tribunais militares, como se houvesse uma justiça à parte da justiça civil), um largo sorriso irreprimível solta-se de cada vez que o exército desfila no seu anacronismo inevitável.

E, apesar da anacrónica eloquência dos senhores generais, a tropa insiste em ser um mundo cheio de particularidades e de privilégios. Dispensa-se de deveres que assistem aos demais. Uma casta que se esconde na prestação de funções na “defesa nacional” para chamar a si um estatuto de excepção. Naquele dia os F16 da força aérea iam sobrevoar o concelho de Penamacor. Não seria encargo excessivo avisar o presidente da câmara. Que, já que a tropa não se dá ao trabalho de comunicar com o povo, faria chegar avisos de que os aviões supersónicos andariam em exercícios espectaculares sobre as cabeças dos habitantes beirãos. Nada disso. Tudo em segredo. Compreende-se: as manobras militares exigem secretismo, não vá o inimigo imaginário ser avisado por um qualquer agente infiltrado entre a população local e frustrar o objectivo do simulacro.

Se a barreira do som for quase atingida, com o estilhaço que se produz, assustando as populações que não tinham sido avisadas das manobras nos céus, paciência. É pelo interesse da nação. Os sustos são efémeros. Não hão-de sequer velhinhos sucumbir de síncope cardíaca. Os animais, assustados? Não contam para o rosário, os animais. Para incómodo dos artífices das manobras aéreas, refugiados nas ameias do quartel, a comunicação social deu voz ao protesto das pessoas que ficaram assustadas com o estrondo. Soube-se depois, pelo esclarecimento de um contrariado porta-voz da força aérea, foi o produto da inépcia de um piloto que acelerou demais o F16. Foi um evento imprevisto, um incidente que não pode manchar a inestimável, prestimosa utilidade da força aérea.

Juntamente com o muito dinheiro que estas manobras custam, prejuízos em habitações que abriram fendas e viram vidros estilhaçados. Não bastava o sorvedouro estúpido de dinheiro que a simples existência da força aérea supõe – sem mencionar o dinheiro deitado fora de cada vez que um F16 se põe a voar brincando às guerrinhas –, há ainda prejuízos das gentes em terra. O incomodado porta-voz, esboçando frete no esclarecimento que lhe estava a custar tanto a prestar, prometeu visita de uma "comissão de inquérito" ao local para apurar os danos. Falta saber quando lá chegará a comitiva.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ora aqui está um comentário de uma pessoa a que se pode chamar "IGNORANTE",se não sabe do que fala,esteja calado.

Já proporcionou aqui ao pessoal uma boa risada com o seu blog.