24.1.08

O hino entoado com a mão direita deitada sob o coração – ou o PSD virou partido nacionalista?


A formidável liderança do PSD é um oceano infindável de surpresas. Uma navegação errática, ao sabor dos ventos que sopram, a bússola atrás dos ventos, incapaz de imprimir o seu rumo próprio. O espalhafatoso líder, um cata-vento todos os dias. Ora promete que irá governar (como se isso alguma vez pudesse acontecer…) mais à esquerda que o actual primeiro-ministro. Ora promete o desmantelamento do Estado num abrir e fechar de olhos, acenando aos liberais mais à direita. Ora revela a sua têmpera se algum dia a improbabilidade de ser primeiro-ministro acontecesse, metendo o bedelho nas televisões ao sugerir nomes para os painéis de comentadores políticos.

É pródigo em incontinência verbal. Sempre foi. Agora que chegou ao púlpito no seu partido, teria que contagiá-lo com o frenesim que se confunde com incontinência verbal. Há quem se enterneça com este “activismo”. E mantenha que a oposição tem que ser enérgica para combater a placidez instalada com os socialistas que se incrustam como inevitabilidades perenes. Nem sempre a vozearia traz dividendos. Falar só por falar pode redundar em mero ruído de fundo, ou numa gritaria ensurdecedora que apenas torna insuportável quem promove o ruído.

Tenho, em relação a este partido de centro-esquerda, o distanciamento higiénico que me permite ser observador exterior. Olhá-lo de fora e diagnosticar uma estranha tendência para a autofagia. Escolhem soluções que contentam clientelas lá dentro, esquecendo-se que quem lhes traz os votos é a esmagadora maioria dos que não são filiados mas, de vez em quando, votam neles. De Santana Lopes em Luís Filipe Menezes, até à banalização?

O último episódio risível veio à memória: há semanas, uma daquelas jantaradas nada frugais e decerto nos antípodas do higienismo alimentar tão amplamente propagandeado. Em Penafiel. Um excerto do discurso do líder, com a assistência pousando os garfos para beber a grandiloquência das palavras que parecem de improviso. Já nem me recordo do tema, nem das promessas sonâmbulas, ou das críticas atiradas contra o primeiro-ministro e seu séquito. Guardei na memória a parte final da reportagem. A mesa de honra, presidida por Menezes e ladeada por figurantes locais, em pé a cantar o hino nacional. Uma entoação arrebatada do hino. O líder teve a iniciativa de elevar a mão direita, em gesto sentido, pousando-a sobre o coração. Como necessários macaquinhos de imitação que prestam vassalagem ao líder, o edil de Penafiel e os restantes figurões locais imitaram o gesto.

Julgava que só os nacionalistas encartados (e uma certa equipa de rugby) tinham a ousadia de cantar o hino acompanhando-o deste gesto frívolo. Os nacionalistas que frequentam os terrenos da extrema-direita, ainda tributária da nação como bem supremo do indivíduo, que se deve inclinar respeitosamente perante a pátria. Como o hino celebra as grandezas pátrias, exige-se um sentido, arrebatado entoar das estrofes que acompanham a melodia. A mão direita resguarda o coração, a sublime mensagem: trazer a pátria no coração. Este ritual é uma coroação da pátria, a declinação do indivíduo perante a pátria, se necessário for a sua entrega num altar sacrificial. Com toda a religiosidade inerente. Uma religiosidade em que a pátria faz as vezes da entidade divina.

O que me intrigou foi a coragem do líder do PSD para um gesto conotado com a heterodoxia politicamente incorrecta. O gesto tem uma conotação nítida com o nacionalismo que vegeta na extrema-direita. Só não percebi a intenção de Menezes (o que, aliás, é tarefa labiríntica). Se a encenação foi intencional, uma estratégia congeminada com os seus consultores, aliciando para o PSD gente que navega nas águas da extrema-direita. Numa surpreendente ultrapassagem do CDS-PP pela direita. Ou, porventura, nesse dia Menezes tomou-se de súbitos amores pela portugalidade que ambiciona governar. No fundo, um gesto autocontemplativo por antecipação (que, diria, é uma impossibilidade).

O CDS-PP e o PNR que se cuidem. O gigante PSD soltou as amarras do centro-esquerda e invade terrenos pisados por aqueles partidos. Na ânsia de esconjurar a demorada cura de oposição, vale tudo – até dar guarida a sinais típicos do nacionalismo de extrema-direita. Pela parte que me toca, geneticamente incapaz de depositar o voto no partido cor de laranja, só lamento que todos estes desvarios sejam a caução para o lúgubre actual primeiro-ministro continuar a sê-lo por muito tempo.

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