28.1.08

Do mau perder


Miopia, ou apenas maus fígados? Há quem se acostume a ganhar, a ganhar quase tudo. E depois, quando entram na arena com um dos rivais históricos e saboreiam a derrota, ausenta-se o poder de encaixe para digerir a desdita. Nunca, nunca o adversário merece sair vitorioso do pleito. A falta de espírito desportivo é marca registada. Podem ser consagrados – ou fazerem a sua auto-consagração – pelos feitos sucessivos nos campeonatos caseiros e até em competições estrangeiras. Nunca teriam o dom de franquear as portas do espírito olímpico.

São tão especialistas em ganhar como em não dar o braço a torcer quando o resultado é adverso. Os pragmáticos, a quem só os resultados interessam – e que rapidamente condescendem que só mesmo os resultados merecem avaliação, não tanto como lá se chega – terão uma palavra de aceitação para o fel destilado na hora das escassas derrotas: tão habituados a coleccionar vitórias e troféus, a passear a superioridade sobre os adversários, na hora em que um pleito é coroado com a derrota solta-se o azedume. E tolda-se o entendimento: numa reviravolta de cento e oitenta graus, afinal ignoram a lógica do resultado que tão religiosamente abraçam. É que quando perdem, é porque o adversário meteu mais bolas na baliza. Não é isso que conta?

Sempre com a mania de serem acossados por todos os lados, elaborando especiosas teorias da conspiração de que são vítimas preferenciais, resguardam-se numa retórica guerreira que faz do jogo uma batalha quase bélica. A animosidade da seita é o cimento da união. Quando a sorte se desencontra com eles – e a sorte é tão aleatória, não é?! – choram-se pelo abandono dos deuses da fortuna a cuja companhia se habituaram. Porventura os deuses da boa aventurança gostam de pousar noutros logradouros, para variar. Às vezes, também para variar, o sortilégio do jogo deixa-os desamparados. Ficam órfãos na sua insuficiente competência. E todas as tentativas esbarram no azar, num passo excessivo que desequilibra do golo, a trave da baliza insolentemente no caminho da bola selada com o destino do golo.

Um grito de revolta mistura-se com a miopia da análise. Vomitam as palavras que desmerecem o feito do adversário, que afinal chegou ao fim do jogo com mais golos na algibeira, açambarcando a vitória. Eles adoram que os adversários se curvem perante a sua superioridade de cada vez que saldam o jogo com uma vitória inequívoca. Faz parte a passadeira triunfal que gostam de ver desempacotada à frente dos seus pés. E pertence-lhes o execrável hábito de humilhar os adversários, como se não fosse suficiente a derrota com que saem vergados do terreno da batalha. Não chega: eles abandonam, cabisbaixos, mas são obrigados a admitir a justeza do feito do adversário, a estocada fatal que rouba os últimos pingos da dignidade dos vencidos. É assim que se comportam na hora da vitória. Todo o contrário quando sai em sorte o sabor amargo de perder uma disputa.

Eu acho que é o hábito das vitórias que dilui o espírito olímpico com que todos os derrotados se devem portar. O azar é ingrediente do jogo. Do outro lado, um adversário. E um jogo é uma sucessão de lances feitos da interacção com o adversário. A indignidade maior é menosprezar o adversário, seja na humilhante estocada fatal com que exigem a vassalagem dos adversários agraciados com a perda do jogo, quer, sobretudo, quando chega a sua hora de fazer a digestão da derrota.

O sorumbático treinador da agremiação sentenciou: “o resultado é uma mentira”. Julgava que a lógica das “vitórias morais”, o ridículo espírito do “perdemos mas saímos de cabeça erguida” tinha saído do vocabulário dos habituados a ganhar até a gigantes europeus. Terá sido distracção, ou apenas uma incontrolável manifestação biliar, mas o cenhoso treinador ensaiou ali a irreprimível pequenez dos que não sabem encaixar o peso de uma derrota.

É nestes momentos que se revela a grandeza dos intérpretes. Tão grandiosa é a vitória que sagra a maior competência face aos rivais, como a humildade de admitir que os adversários mereceram saldar o pleito com a vitória, disfarçando a turbulência que se apodera do fígado. Ou, então, trata-se apenas de maus fígados. No rescaldo, alguém devia perguntar ao treinador incapaz de esboçar um simples sorriso (imagem de marca daquela agremiação, todavia): quantos golos meteram os seus na baliza do adversário? E o adversário, quantos golos meteu? Não é o golo a chancela da justeza de um resultado? O resto, efabulações misturadas com a bílis estragada.

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