É talvez uma das mais agudas doenças das actuais democracias: as muitas promessas feitas em campanha eleitoral que vão sendo esquecidas, ou até violentadas, ao longo do mandato de um governo. Os mais críticos – e os que se despem de imparcialidade por vogarem de outro lado da barricada de um determinado governo – denunciam a indignidade das promessas não satisfeitas. Argumentam: desfaz-se o capital de confiança entre os eleitores e os que governam. Sobretudo entre os eleitores que foram seduzidos pelo programa eleitoral feito de promessas tentadoras que, afinal, vão sendo frustradas.
Há uma tremenda falta de responsabilidade pelos actos e, sobretudo, pelas omissões dos políticos. Desta forma, os políticos são uma classe à parte das demais pessoas, permanecendo intocáveis à medida que se desfazem as promessas de outrora que vão entrando no rol dos esquecimentos, ou das impossibilidades. Uma casta de excepção, por não serem chamados à pedra. Poderão alguns contrapor: há um momento em que não se podem furtar ao julgamento popular, quando se renovam as eleições. Só que raramente o eleitorado faz um julgamento retrospectivo. É muito tempo, tempo suficiente para as promessas antigas e não cumpridas serem resgatadas como capital de penalização de quem tanto prometeu e pouco fez. A memória curta limpa o cadastro das promessas falhadas. As eleições voltam a ser o palco para a competição do catálogo de promessas prospectivas.
A escolha de um eleitor deve, entre outros aspectos, pesar a acção passada de quem esteve no governo e a comparação das promessas dos partidos que concorrem a uma eleição. Pesar nos pratos da balança o passado e o que se promete para o futuro. É impossível desligar os dois exercícios temporais. Todavia, como a memória se apaga com os fragmentos do tempo ido, o incentivo para apresentar um cardápio de promessas deslumbrantes é irresistível. Os políticos sabem que vão ser julgados não pelo que não fizeram mas pelo que prometem para os dias vindouros.
Esta é a génese da irresponsabilidade dos políticos (no altar do governo) perante as suas omissões. Diante deste diagnóstico, que solução para curar a maleita da democracia – e para restaurar a exigível responsabilidade dos políticos? Defende-se (no blogue “A destreza das dúvidas”) a solenização das promessas em campanha eleitoral. Seria através do registo em notário do cardápio de promessas. Ficariam lacradas com selo oficial. Como se fosse um testamento que os partidos políticos deixam para posterior apreciação. A qualquer momento seria possível perguntar ao notário pelas promessas, cotejá-las com o percurso da governação. Até os partidos remetidos à oposição seriam julgados: perante as promessas que fizeram seria ajuizado o seu desempenho na oposição. Para saber se as propostas alternativas que apresentam se afastam das promessas feitas em campanha, ou se as críticas à governação não expõem incongruências em relação ao catálogo de promessas.
A proposta é aliciante. Teria o condão de evitar políticos que se confundem com vendedores de banha da cobra, atreitos a prometer tudo e mais alguma coisa, sabendo de antemão que a probabilidade de satisfazer essas promessas é reduzida. Confiam na ingenuidade dos eleitores e avançam com um rosário infindável de promessas, o isco que os incautos eleitores mordem. Pela experiência, sabem que mais tarde, quando houver eleições, o passado será branqueado e o julgamento far-se-á pelos dotes prospectivos. Espanta-me a capacidade de esquecimento do passado. Como a menoridade dos eleitores, em doce cumplicidade com os políticos, passa uma esponja pelo desempenho passado. Sem nada aprenderem com os sucessivos erros que vêm detrás, reiterando, eleição atrás de eleição, a obnubilação de promessas passadas, só interessando as promessas voltadas para o futuro. É que assim as promessas nunca chegam a ser julgadas.
A proposta de lacrar em notário as promessas dos políticos é tentadora. Temo que não seja eficaz. A qualquer altura, os mentores do governo desmultiplicariam argumentos a justificar a impossibilidade de cumprir promessas. Diriam que as “circunstâncias mudaram”, tornando impossíveis as promessas. Diriam até, quando se mudassem da oposição para o governo, que desconheciam como estava o país governado pelos antecessores. A proposta teria a vantagem de impedir a desfaçatez de políticos mentirosos, quando são confrontados com promessas que fizeram e negam que as tenham feito. Por outro lado, este sistema seria um convite para que partidos sem possibilidade de chegar ao governo registassem promessas miríficas, sabendo que nunca seriam chamados a passá-las do papel à prática. O que poderia falsear os resultados das eleições, premiando esses partidos e penalizando os que teriam a exigência de só apresentar promessas realizáveis.
E depois há muitas perguntas que ficam sem resposta: na hora da verdade, em que as promessas anteriores fossem deslacradas e um juízo fosse feito, o que acontecia aos partidos com mais promessas falhadas? Que sanções lhes seriam aplicadas? E todas as promessas falhadas teriam a mesma gravidade?
Às vezes, propostas aliciantes esbarram na sua própria impossibilidade. Com o inconveniente de agravar a doença da democracia.
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