No tempo dos reis, eles ficavam para a história pelos feitos e pelo cognome que os distinguia. O advento das repúblicas mudou os hábitos. Aos presidentes não é usual adejar cognome quando entram para as molduras da história. No entanto, não é difícil discernir cognomes para os antecessores do actual inquilino da cadeira presidencial: Sampaio, o ininteligível (ou: Sampaio, o timorato); Soares, o monarca sem coroa (ou: Soares, o implacável); Eanes, o esfíngico (ou: Eanes, o homem que perdeu o sorriso).
Mal ficará propor cognomes para um presidente que ainda vai a meio do mandato. Fazê-lo será gesto de mau gosto: os cognomes atribuem-se depois das personalidades desabitarem a sinecura. Ora, o actual inquilino ainda mora no palácio presidencial e, ao que consta, o enamoramento com os socialistas inscreve-se na oportunista estratégia de garantir a renovação do mandato quando vier tempo de eleições. Ainda assim, ouso sugerir um cognome mesmo sabendo que rompo com os costumes: Cavaco, o invejoso.
Tudo porque na mensagem de ano novo, por entre um sucedâneo do discurso sampaísta, sua excelência perorou sobre os muito elevados salários de certos gestores. No seu douto entendimento, demasiado elevados. Só os distraídos não entenderam o alvo: os gestores do Banco Millennium que se abarbatam com salários obscenos, também no entendimento de outros observadores. Percebo a indignação destes e a cautela do “mais alto magistrado da nação”: fica sempre bem exprimir preocupações sociais. Cavaco sublinhou-o na sua mensagem sampaísta: o abismo entre os administradores e os trabalhadores comuns pode alimentar tensões insuportáveis. Pode até cercear a bovina tranquilidade que apascenta os costumes e a monotonia tão do agrado dos cinzentões do regime – de que sua excelência é o sumo pontífice.
O que sobra da retórica que ressoa a marxismo recalcado? (E digo marxismo porque, daquele aviso, intui-se a crença de Cavaco no argumentário da luta de classes, tão nítido quando chama a atenção para o abismo entre as remunerações do escol de gestores e das que são auferidas pela maralha indiferenciada.) O que sobra é uma inveja, também ela recalcada. Ambicionaria Cavaco ter sido convidado para o conselho de administração de um banco privado que remunera principescamente os seus iluminados gestores? Há que recordar: está convencionado que Cavaco é um dos maiores economistas contemporâneos da terra lusitana (numa tremenda confusão entre dois papéis: o de economista e o de político). Aos grandes economistas ficam reservados lugares de excelência na gestão das grandes empresas. Não será esta a lacuna que deixa uma mácula do currículo de Cavaco?
E depois há que adicionar um traço tão típico da idiossincrasia nacional: a mesquinhez, de braço dado com a inveja. Aliás, é a mesquinha maneira de ser, a forma tão pequenina de sermos, que fermenta a doentia inveja. Desconfiamos dos que estão muito bem na vida. A primeira tentativa para desmerecer a posição privilegiada em que se encontram é duvidar do mérito, ou questionar a forma como chegaram ao lugar de privilégio. Se houver fracasso nesse exercício, o segundo acto consiste em esfolar a criatura através da insidiosa inveja. É tempo para esgotar as aleivosias. Lá no fundo, a inveja indisfarçável é a confissão de como gostariam de estar na posição de quem tanto invejam.
O exercício de sampaísmo na mensagem de ano novo de Cavaco é ainda mais insólito por anunciar a confusão entre dois mundos que deviam viver separados: sector privado e sector público, empresários e políticos. Sim, a cumplicidade entre os dois mundos é recíproca. A culpa deve-se tanto a políticos que adoram interferir nas empresas, como aos empresários que amesendam com a política, sempre dependentes das grandes negociatas com o Estado ou da paternalista protecção do Estado. Tudo isto explica a prescrição de Cavaco. Num país normal, era o que mais faltava vir o presidente da república dar palpites sobre os salários praticados nas empresas privadas. Por cá, neste rectângulo dominado pela pequenez de pensamento, ainda se aplaude. Há um sinal sublime em tudo isto: a bênção de Cavaco à grotesca intrusão dos socialistas governantes (o tandem governo-governador do Banco de Portugal) no Banco Millennium. Mais um acto para o noivado entre Cavaco e os socialistas governantes.
O que se segue? Sugerir que há futebolistas que, também eles, auferem salários obscenos? Determinar por decreto que ninguém pode ter salário mais elevado que sua excelência o presidente da república? Suspeito que no Palácio de Belém ficou depositado um vírus, chamado “Sampaio”, que tomou conta do actual inquilino. É que ele parece, cada vez mais, um clone do seu antecessor...
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