29.1.08

Um ateu reconvertido tem dilemas existenciais?


Vai por aí uma tempestade por causa de um convite da Universidade de Roma La Sapienza ao papa Bento XVI para discursar na abertura solene do ano lectivo. Correu, célere, um abaixo-assinado subscrito por professores da universidade protestando contra a visita. Bento XVI declinou o convite. A polémica incendiou-se. As versões variam (dos adeptos da igreja, ou simplesmente dos paladinos da liberdade de expressão; e dos ateus militantes, disparando munições contra a igreja): o papa foi impedido de falar; ou terá sido apenas uma encenação papal, uma retirada estratégica para se vitimizar às mãos dos carrascos da intolerância religiosa, os ateus implacáveis.

E anda meio mundo entretido a polemizar sobre um nada. O que interessa saber se houve mesmo intolerância, ou se o papa manobrou o episódio para encostar às cordas os adversários, que assim carregariam perante a opinião pública o opróbrio da intolerância? Os dois lados da barricada têm apresentado furiosas argumentações que chamam a si a razão e querem deixar os adversários em maus lençóis. Uns, ratos de sacristia ou tão só amantes da liberdade de expressão, acusam os outros – adeptos do ateísmo – de impedirem a liberdade religiosa. Houve até quem sugerisse, em perfeito exagero, que o episódio mostra como nos dias que correm os ditames do politicamente correcto empurram a igreja para a clandestinidade. Do lado contrário, a negação das acusações. E um contra-ataque que vai às catacumbas da memória para mexer com os esqueletos incómodos da igreja, as inquisições e as intromissões na consciência individual.

Há polémicas boas, polémicas que interessam apenas a uns quantos, entretidos com a especificidade do tema, e polémicas estéreis. Eu acho que está é uma polémica estéril. Com muito malabarismo argumentativo. No desfile da retórica usada pelos dois lados da barricada, truques que escondem fantasmas que os atormentam, fantasmas que enfraquecem as respectivas posições. É o que sucede quando são desferidos ataques violentos contra a parte contrária: o ataque desvia as atenções para o acessório, pela percepção de que o acessório chama mais atenções que o essencial, entretanto deixado ao esquecimento.

Nesta polémica que arde bem alto, o que tem sido discutido não deixa de pertencer ao acessório. Quem acaba por cair numa armadilha são os que, do lado do ateísmo, disparam acusações ao papa. Eis a forma como um ateu reciclado lê os acontecimentos (um ateu reciclado: alguém que teve educação católica e, entretanto, perdeu os vestígios da fé e abraçou o ateísmo). O antagonismo entre católicos e ateus centra-se em deus. Os primeiros acreditam na existência de deus. Entre as fileiras do ateísmo, há quem dedique tempo excessivo a negar a existência de deus. É a esparrela em que os exacerbados ateístas caem. Quando tentam provar a inexistência de algo, o erro metodológico de dar o flanco ao adversário. Não é tanto pela atitude de negação, com a provável exposição às críticas de quem os acuse de se limitarem a desconstruir algo. O problema é que a vertigem pela ausência de deus acaba por ser o trunfo de que estão à espera os crentes em deus.

A dúvida existencial que assalta o ateísmo é um tremendo erro de método. O constante acosso da divindade que dizem negar traz à superfície uma interrogação: não estarão os ateus apenas a negar a evidência? Não estarão a afirmar, através da negação, a existência daquilo que se convencem não existir? É por isso que toda esta polémica é um alçapão fundo em que os ateus caem, a insistência no erro que só aproveita aos católicos. Às voltas com os crentes, são arquitectos da afirmação do deísmo. Inadvertidamente, cultores da deificação do que tão exacerbadamente negam existir. O erro dos professores de La Sapienza autores do abaixo-assinado foi a importância excessiva dedicada ao sacerdote maior de uma entidade que sagra a existência de uma divindade inexistente para os ateus. Ora, se deus não existe, porque se deitam os ateus que nem cães raivosos ao sacerdote maior dessa igreja?

Como ateu reciclado, extraviado do catolicismo, tenho dilemas existenciais. Não os tenho, contudo, relativamente a deus. Não me persegue a urgência de afirmar a inexistência de deus. O ateísmo deve pressupô-lo. O conceito de deus é um corpo estranho aos quadros mentais em que se movem os ateus. Quando a discussão envolve deus, ou traz polémicas que abraçam de lados opostos da barricada crentes e ateus, a entrega à polémica é uma forma de creditar, sem o querer, a existência do que dizem ser uma ausência. Que haja a tentação de não fugir a uma boa polémica, pela excitação intelectual que elas emprestam, é o dano colateral que atinge os ateus. Essa sim, a dilacerante dúvida existencial semeada nas suas vidas.

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