9.1.08

E a ASAE não encerra a aldeia transmontana?


Há uma aldeia no concelho de Mirandela com uma provocante tradição: nos festejos do dia dos Reis, as crianças estão autorizadas a fumar – e pais e avós fornecem o tabaco. Houve uma criança de oito anos que em dois dias fumou vinte e três cigarros! Talvez por coincidência, só este ano é que a comunicação social descobriu a aldeia e a tradição ancestral. A fazer coincidir com a lei que proíbe o fumo do tabaco em locais públicos. Não fosse esta lei, mais um episódio do higienismo forçado que varre a santa terrinha de lés a lés, e a tradição insólita continuaria a ser um epifenómeno votado à clandestinidade. A aldeia nem aparecia no mapa.

Imagino o horror que invadiu os apóstolos da perfeição sanitária que se tem imposto via ASAE. (Sim, que há muitos que condescendem com a existência da autoridade paramilitar sanitarista: o argumento poderoso de que há por aí muita chafarica que é mostruário de imundice, inadmissível atentando à saúde pública. Espero não incomodar as consciências bem pensantes com a seguinte pergunta: e se acaso eu quiser ser frequentador assíduo de tabernas repugnantes, onde a palavra higiene não entra no vocabulário, porque se há-de impor a vontade dos apóstolos sanitários sobre a minha vontade?) Regresso ao horror estampado nos rostos dos fascistas do higienismo ao verem petizes de cigarro na boca. Como é possível? Só a tão grande ignorância dos progenitores, que inoculam prematuramente um vício tenebroso, o explica. Uma legião de juízes devia retirar a tutela paternal a estes pais inconscientes.

Eu acho que a ASAE devia meter-se ao caminho, atravessar os contrafortes do Marão e entrar na terra fria transmontana. Para colocar aquela gente na ordem. Como é possível, logo agora que deu entrada a lei que põe os fumadores em sentido, descobrir-se um longínquo reduto que teima em furar a sintonia que se impõe por força de decreto? Para contrariar a ignomínia destes aldeões, a ASAE faria o sequestro da aldeia. Invadiria a aldeia nos seus carros blindados, com um numeroso contingente de agentes armados até aos dentes, como se fossem combater os terroristas que destruíram o sonho lindo do Lisboa-Dakar. O ministro da tutela assinaria a ordem de quarentena. Os aldeões não poderiam sair de casa durante a quarentena. Seriam visitados por terapeutas que os convenceriam a abdicar da anacrónica tradição que rompe com um baluarte da modernidade de que é esteio o timoneiro do país. A quarentena só acabaria quando não houvesse vivalma a escapar à lavagem cerebral, sob pressão das baionetas da ASAE.

Tudo isto não passa de cenário fantasioso. É que uns escassos minutos após ter entrado em vigor a lei que ostraciza os fumadores, o apóstolo maior do higienismo impetuoso foi apanhado com a boca na botija, perdão, a fumar uma cigarrilha no casino do Estoril. Acho que o povo, que se acha especialmente sapiente nestes momentos marcantes, seria certeiro ao disparar um dos adágios que preenchem a sua sabedoria: “bem prega Frei Tomás”...

Não fosse o deslize do paramilitar sanitário que lidera a ASAE e o organismo que zela pela nossa saúde e ensina os costumes aceitáveis já teria feito incursão espectacular na aldeia de Mirandela. Por ora, limitam-se as vontades do fascismo higiénico a retocar a imagem beliscada do herói. Tanto que ontem tivemos o prazer de saber que há interpretações das leis feitas à medida de personagens importantes e que o director da ASAE é mesmo protagonista. Havia uma dúvida: a lei que proíbe o fumo em locais públicos sobrepõe-se à lei dos casinos? Queria-se saber se os casinos podem ser excepção à persecutória lei do tabaco. Por outras palavras, pretendia-se esclarecer de vez se o apóstolo chefe da autoridade sanitária tinha cometido um pecadilho inaceitável ao fumar dentro de um casino.

O director-geral da saúde, que no ocaso do ano passado ameaçou com a demissão caso a lei do tabaco não fosse escrupulosamente respeitada, anunciou ontem à pátria que afinal os casinos são uma excepção. No rescaldo, o director da ASAE passou incólume e nós aprendemos o contrário do que se ensina a quem aprende os rudimentos do direito: a lei geral não se impõe sobre uma lei especial. A lei pode ter sido torcida para perdoar o apóstolo da ASAE, é certo. E assim o homem há-de continuar a esfregar o seu imenso ego, julgando-se justiceiro de uma causa que nos evangeliza, nem que seja à força, contra vontades individuais que se lhe oponham. Aliás, ele já sentenciou os que teimarem em remar contra a (sua) maré, pois disse, em entrevista, que é “o rumo desta sociedade e nós, se não quisermos viver nesta sociedade, temos a hipótese de emigrar”.

Diante desta pesporrência, do desrespeito pelo livre arbítrio das pessoas, tenho uma súbita pulsão violenta (logo eu, que nunca andei à pancada com ninguém, ou sequer empunhei uma arma de fogo...): formar uma milícia que perseguisse a ASAE e só se contentasse no dia em que o seu director fosse exilado para bem longe, com bilhete de ida, apenas. E, diante desta pesporrência, uma vontade incontrolável de aplaudir uma tradição popular – logo eu, tão adversário de tradições populares anacrónicas e patéticas.

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