23.1.08

Do que eu gosto é de barragens


Todos os dias, a abundância de gente a meter água. Até cada um de nós, inadvertidamente ou por inépcia. As inundações quase nos afogam na água que jorra. Ora em jactos, ora com uma lentidão venenosa – consoante a asneira seja flagrante ou apenas se insinue nos seus efeitos demorados. Como nos custa a introspecção dos erros próprios, vigiamos a asneira alheia. O diagnóstico lapidar: tanta água que escorre, desperdiçada, sinal da incompetência que nos outros é sempre mais nítida.

É por isso que as barragens me deixam fascinado. Obras de engenharia majestosas. O homem na exteriorização das suas plenas capacidades. Domando a natureza, transformando o curso dos rios. As barragens, ao contrário do quotidiano que nos cerca, retêm a água. Os engenheiros que as projectam conseguem desviar cursos de água para montarem a estrutura de betão que há-de ser o paredão onde embatem as águas dos rios, pondo mão no seu caudal.

Os espelhos de água retidos pelas barragens são a miragem onde se consomem todos os passos em falso na lassidão da tolice militante. Toda a água que metemos seria vertida nas albufeiras, o repositório das asneiras insistentes. Só que as albufeiras que esbarram no paredão das barragens são o contrário de tudo isso. As margens recortadas da albufeira contemplam o estio ou a estação pródiga em chuvas, consoante os caprichos da meteorologia.

Não há segredos no enchimento ou no vazamento das albufeiras. Mesmo assim, sobra o aleatório, como se a sorte das albufeiras fosse lançada pelos dados no tapete verde de uma sala de casino. No contraste com o voluntarismo humano que cede o passo à asneira, a franquia para a água que metemos a rodos. Por vezes, incapazes de admitir que somos os fautores únicos dos passos em falso, há o refúgio complacente na sorte arredia. Até nisso a água foge por entre os dedos, adensando o caudal que se esvai sem utilidade alguma.

É grande a admiração pela engenharia que soube domar a natureza. Exactamente nos antípodas de governantes que querem tapar o sol com a peneira, apenas porque esse efeito é de uma oportunidade atroz para as suas agendas. São aprendizes da arte de enganar uma vasta audiência. Eles aparecem, feiticeiros que fazem acreditar que conseguem desviar a natureza do seu curso. Congeminam um discurso feérico: a realidade pintada a cores diferentes, as que lhes são mais aprazíveis. Ainda que essa seja uma natureza idílica, apenas desejada, mas não a natureza que desfila diante dos nossos olhos. São contorcionistas que apresentam um espectáculo pestilento. A sua arte é a de convencer os incautos que conseguem domar a natureza que passa por cima deles, incontrolável. O contrário das barragens que, elas sim, domam a natureza.

A cada sinal da arte do embuste, que ganha lugar de especialidade só ao alcance de profissionais bem treinados, é maior a admiração pelas barragens. Seriam elas o farol de um lugar guiado pela honestidade na arte da política. Elas ensinariam o princípio vital de reter a água, impedindo o tão elevado ónus que é o desperdício de água, a imbecilidade da asneira premeditada. A denúncia da água que se esvai, sem freio, a cada palavra encenada pelos que não passam do tirocínio da governação. Eles estão é empenhados na sua sobrevivência, mesmo quando ela é tão nefasta para os que estão sob a sua alçada.

Nem mesmo os que se arvoram na dupla condição de engenheiros e governantes as conseguem reunir numa só. Como se tirassem partido das aptidões da engenharia, que mais do que outras ciências se aproximou do limiar quase divino que é domar a natureza. Ou são engenheiros ou são governantes. Condições que se excluem reciprocamente. Parece, até, que assim que engenheiros se inebriam pelos holofotes do poder desaprendem os atributos de domadores da natureza que lhes ensinaram. E passam a ser campeões a meter água.

Deviam andar atrelados a mini-hídricas ambulantes que retivessem toda a água que metem, a cada dia que passa. Os ecologistas desdobrar-se-iam em aplausos. E seria maneira destes profissionais do erro verem, no espelho de água acumulado atrás deles, como a humildade anda arredia. E como todos agradeceríamos que se dedicassem a outras artes, mais anónimas.

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