8.1.08

Afinal, não somos assim tão diferentes dos franceses


Muita tinta escorreu depois da anulação do Lisboa-Dakar. Entre a decepção dos concorrentes, sobretudo dos amadores que mais ficaram a perder (na carteira e no espírito) e comentadores desportivos e não só que subitamente descobriram a sua especialização em geopolítica, já ouvi e li muito acerca da bombástica decisão dos organizadores franceses. Lá vem o argumento usual dos Rambos de trazer por casa: foi uma vitória dos terroristas; uma lamentável cedência; uma capitulação perante as ameaças do terror sanguinário. E depois há as lucubrações fantasiosas: teorias da conspiração esplêndidas que metem ao barulho o danado governo francês que, invejoso, “forçou o cancelamento” (cito o Autosport) da prova.

Ontem, no habitual momento de meditação espiritual da semana (a leitura do Autosport, a minha bíblia semanal) o desvario atingiu o zénite. Metade do jornal desmultiplicava-se numa histeria descontrolada, no descontentamento pela anulação do Lisboa-Dakar. Começa logo na capa: “cedência a ameaça terrorista cria grave precedente” e “medo vence Dakar”. E vai por aí fora: “governo francês forçou cancelamento” – ainda que, nesse mesmo dia, em visita a Lisboa, o ministro dos negócios estrangeiros tenha garantido que não houve interferência do governo junto da organização da prova. (E se é verdade que os políticos mentem com todos os dentes, pergunto-me por que razões insondáveis haveria, nesta circunstância, perante as ameaças reveladas pelos serviços secretos, mentir um governante.)

À medida que as páginas do semanário se sucedem, mais análise toldada pelo irracional. Alexandre Correia, especialista do todo-o-terreno, assevera que foram “razões meramente políticas” que influenciaram o cancelamento do rali. É mais outro a engrossar o rol da teoria da conspiração, pois dá como certo que “a partir do momento em que o governo francês dá essa ordem [de anular a prova] as alternativas da A.S.O. são praticamente nulas (...)”. Na mesma página, sob a epígrafe “perguntas sem resposta”, há uma particularmente deliciosa – e reveladora do desacerto mental que invadiu muita gente: “se a prova se designasse Paris-Dakar – ou seja, se partisse da capital francesa – Nicolas Sarkozy tinha sido tão zeloso com a segurança dos seus cidadãos?” Ou, logo a seguir, num delírio que nem merece qualificação, interrogando se não “será uma demonstração do poder de Nicolas Sarkozy? Quiçá uma forma de se afirmar por uma acção política, quando tem sido a sua conturbada vida social a merecer a atenção da comunicação social?

(Estou mesmo a imaginar os feitores de imagem de Sarkozy, sussurrando-lhe ao ouvido: senhor presidente, as pessoas só se interessam pelo seu affaire com a cantora Carla Bruni; para desviar as atenções, e dar uma prova de força, vamos inventar ameaças terroristas sobre o Lisboa-Dakar e impor o cancelamento da prova.)

O desnorte contagiou-se até ao director do jornal. Rui Freire também dá por garantidas as ingerências políticas e reclama a cedência perante os terroristas como precedente grave. Adivinha que se abriu uma “caixa de Pandora”, ao indagar como “irão ser geridas outras situações de crise se pairarem ameaças deste jaez sobre o Mundial de Futebol, os Jogos Olímpicos, um Grande Prémio de Fórmula 1, ou uma prova do Mundial de Ralis”. Acrescento eu: como se o palco do Lisboa-Dakar fosse semelhante, perante o terreno aberto que o torna exposto a ataques terroristas, o que já não é tão provável nas outras competições desportivas exemplificadas. E depois ainda há Domingos Piedade a puxar os galões: “Eu, que todos os dias leio dezenas de publicações, em línguas diversas, garanto que nunca li nada sobre isso [as ameaças terroristas].” Descontando alguma fantasia – dezenas, no plural, implica pelo menos vinte publicações; e Domingos Piedade não faz mais nada ao longo do dia?! – sobra a seguinte interrogação: por acaso estas questões, tratadas pelos serviços secretos, não ficam reservadas ao secretismo tão típico dos serviços...secretos?

O momento mais hilariante estava reservado para uma moça que, ano após ano, recebe somas vulomosas de patrocinadores para arrastar a sua lentidão nas areias do deserto e nas savanas africanas ao volante de um camião. Elisabete Jacinto, frustrada pela decisão da organização, teve a sagacidade de concluir o seguinte: “se há problemas na Mauritânia, também os houve em Nova Iorque, em Madrid ou em Londres, mas as pessoas não deixaram de apanhar o metro ou de andar de avião.” A senhora professora de geografia, talvez por ainda estar “visivelmente irritada”, não foi capaz de discernir o seguinte: se acaso tivesse havido ameaças do que acabou por acontecer em Nova Iorque, Madrid e Londres, as autoridades não tinham evacuado o World Trade Centre, o Pentágono, as estações de metro e comboio atacadas pelos terroristas?

E se, afinal, a prova tivesse ido para a frente? E se houvesse vítimas a lamentar depois de covardes ataques terroristas? A quem se pediam responsabilidades? Podemos contemporizar com vidas humanas em risco, assim de forma tão leviana? No meio do burburinho, fica a triste imagem de um quinhão do país que é tão chauvinista como o pior dos chauvinismos que é idiossincrático em França.

Sem comentários: