14.1.08

Da erudição esmagadora


Mentes brilhantes. De uma refulgência ímpar. Passeiam dotes intelectuais com indisfarçável vaidade. De umas vezes, ostentatória. De outras vezes, sublime – o que é mais irritante, ainda. Esmagam-nos com a sua erudição que vai quase até aos limites do infinito. Elevam-se aos píncaros da maioridade intelectual, um lugar reservado aos eleitos com dotes dir-se-ia sobre-humanos (quando a inteligência é contabilizada). Devem adorar concursos de coeficiente intelectual.

E, todavia, esta erudição dá uns passos em falso. Ela tropeça nos seus passos. Os excitados espécimes da inteligência esmagadora não se cansam de exercitar uma inteligência pérfida. Esfregam-na na face dos outros, reduzidos à sua insignificante condição de vassalos das elites que levitam na áurea dos eruditos. Fazem gala da sua inigualável inteligência em frases assassinas, só decifradas depois da enésima leitura. E resguardam-se na ambiguidade das palavras cifradas que escrevem ou dizem. Em sua defesa, argumentam que não há segundo sentido nas palavras proferidas. Só que as palavras codificadas encerram a sua própria ambiguidade, os múltiplos sentidos com que podem ser lidas. A erudição servida no prato dourado, de braço dado com a ausente frontalidade.

Há nesta esmerada erudição um totalitarismo recalcado. Os sacerdotes da inteligência esmagadora empurram os outros, os pobres de espírito, contra a parede da sua reduzida expressão intelectual. É uma batalha de intelectos. Os que são desprovidos de especiais atributos de massa cinzenta sofrem derrotas humilhantes, vergados perante a inteligência que esmaga, como se esmaga um incómodo insecto. É: uma erudição insecticida.

A retórica ambígua, com muito palavreado cheio de significados múltiplos – ou não fosse esta ambiguidade traço da mais elevada inteligência – mistura-se com um refinado sentido de humor. Que, contudo, é humor de sentido único, em círculo fechado, tem remetente e destinatário na mesma pessoa. Percebe-se o esboço de humor refinado, que não passa de esboço disso mesmo. Em abono da verdade, deve ser refinado este acto de humor: só as limitadas capacidades dos que vegetam na rasteira intelectualidade impedem a percepção do exercício humorístico. Para os pobres de espírito, aquele humor refinado pertence ao domínio do ininteligível: olham para os arautos da esmagadora erudição quando soltam as pérolas humorísticas e contemplam-nos nas golfadas de riso abastado que soltam no instante imediato ao chiste disparado com intempestiva arte.

Há uma forma mordaz de os tratar: “adiantados mentais”. Andam à frente dos outros, uma verdadeira vanguarda que, sabendo-se possuída dessa condição, esfrega-a no rosto dos incautos que sucumbem vergados ao peso da sua enorme sabedoria. Quando ostentam as suas capacidades com as pinças sublimes, são mestres da dissimulação. Têm garbo em ser tão sublimes com a sua incomparável erudição. É quando mais esmagam os outros, quando mais se distingue no firmamento a sua elevada inteligência. Os tentáculos da ambiguidade que cercam as vítimas da sua inteligência, da inteligência aterradora. É quando se adiciona um ingrediente fatal: o cinismo, como se fosse refúgio onde se espelham as mentes brilhantes.

É como adiantados mentais que perseguem as vítimas que aparecem pelo caminho. Orgulham-se da condição de campeões da intelectualidade, através da qual vingam no campeonato da força da razão – que o seu estatuto intelectual permite e cauciona como incontestável porta onde se abriga a verdade e a razão que professam, elas tão incontestáveis com a sua superioridade intelectual.

A vaidade sublime é notória. Lá do alto do pedestal onde se colocam, olhando com soberba para os pobres de espírito, desfilam a envaidecida erudição. Fazem lembrar a história infantil em que uma bruxa inquiria o seu espelho, observando-se nele, impante. Estes peregrinos do escol da intelectualidade também se olham a um espelho fictício de cada vez que exercitam a esmagadora inteligência contra os outros. E perguntam, febris nas suas convicções: “espelho meu, espelho meu: há alguém mais inteligente que eu?

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