2.1.08

Amotinados


A discordância era método. Catecismo, até. Eram marinheiros teimosos, carrancudos diante do degredo intelectual a que se remetiam, expostos perante as palavras que sempre embelezavam os sentidos dominantes, a militância da maioria. Contra a qual remavam. E quanto mais caudalosa fosse a torrente, com mais intrepidez saltavam para a embarcação e remavam, remavam sempre na direcção contrária.

Sentiam-se amotinados no meio da vasta nau em que todos laboravam. Sabiam que lhes estava reservado o lugar desconfortável de serem olhados de soslaio pelos outros, pelos pastores da cansativa letargia em que os demais navegavam. Por vezes, nem tinham a certeza porque remavam para o lado contrário, a não ser a convicção militante de ser o lado contrário do espelho baço onde os outros se reviam sem nada indagar. Eles, pelo contrário, tudo questionavam. Exauriam as interrogações. E diante tudo o que era confortavelmente aceite, faziam-se dissidentes. Eram as pedras no sapato dos cultores dos consensos habituais. Nem sequer os incomodava saber que de tanto serem os espinhos cravados nos pés dos que reverenciam a monotonia de sempre, era-lhes reservado isolado reduto de onde não pudessem incomodar as excelências que tomavam conta do leme.

E por vezes, dominados pela emoção: a exigência de ser dissidente, apenas uma exigência de método. Discordar era a urgência de destoar da maré fastidiosa. Nem sabiam ao certo que rumo imprimir aos remos de cada vez que entravam na embarcação necessária onde, amotinados, faziam ecoar a sua voz de protesto. Só sabiam da recusa em remar a favor da maré caudalosa. Eram diferentes os caminhos que queriam prosseguir. Outros caminhos; ainda que desconhecidos caminhos. A única razão que os invadia era a desidentificação com o luar que alumiava as veredas teimosamente pisadas pela multidão.

A tal ponto que serem amotinados era vicioso. Uma doença que se contagiava a todas as veias. Não ficava uma para ser dissidente da dissidência militante que aumentava de tom à medida que a idade se acastelava. A rejeição das coisas habituais começava a confundir-se com um espírito de contradição sem razão outra que não fosse vogar na antítese dos lugares apascentados pela maioria. Eles eram a contradição de si mesmos: de cada vez que conseguiam discernir porta de saída do labirinto onde se aprisionavam, só lhes interessava dar guarida a um novo labirinto que fosse negação dos lugares-comuns por onde vegeta a maioria. Esse novo labirinto, contradição da solução para sair do labirinto anterior.

A certa altura, param para interiorizar: dominados pela viciante entrega à negação das coisas. O temor que de tanto se amotinarem contra a água caudalosa, sejam reféns da contradição por militância, da dissidência que se dilui na sua própria opacidade. Motins estéreis. Têm experiência cimentada no passado. Eles sabem que de cada vez que sentem a gratificação de andarem pelos caminhos alternativos, ao dobrarem a página semeia-se um horizonte sem nada. A glória efémera, a glória que se esgota no instante em que descobrem que o motim levou-os a lado algum.

A dependência é tanta que se acaso vingam ideias que alguma vez defenderam enquanto alimentavam dissidências, deixam de ser ideias respeitáveis. Logo que entram no altar do reconhecimento deixam de ser seu património. Passam a ser objecto de contestação, elas que num tempo ainda não distante tinham o seu cunho. O que interessa é deambular pelos caminhos pedregosos, desconfortáveis para os que bebem apenas a seiva oferecida pelos sacerdotes da bonomia envenenada. A glória que é algum dia serem fautores a destempo das ideias que vingam é um golpe profundo na natureza de eternos amotinados. Perturba-os a atribuída paternidade das vagas que percorrem a maré que substitui a que outrora dominara. Nem que tenham que renegar o que lhes era devido no passado. Mais alto ergue-se a voz que anda a descompasso com a matéria que adensa a monotonia das cores que sinalizam o norte necessário.

Para os amotinados, a vida é extenuante. Sempre aprisionados pela caução dos lugares diferentes por onde peregrinam. São nómadas no meio dos outros. E acabam nómadas em si mesmos.

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