Naquele navio seria invisível passageiro. Os homens, na rotina diária da manutenção do navio, nem dariam conta. Seriam dias a eito sem pronunciar palavra que fosse. Reservada a palavra para os registos em forma de papel, a caução maior do degredo voluntário. Sentiria o navio como um regaço acolhedor onde todas as lágrimas se derramariam no vasto oceano diante dos olhos. Toda a água, todo o sal – feitores das lágrimas vertidas, e das tantas por verter houvesse maneira de resgatar o espírito da couraça que o domou em empedernido escudo. O ferro gasto do navio, enferrujado algures, rejeitava a idade jovem, expunha-o às rasteiras metidas por ondas ousadas. A água do mar repousava no convés, espalhava-se no rosto já salgado e adormecido pelas ideias que se fertilizavam na luz dos relâmpagos.
Aquela água, ensopando o oleado, era o bálsamo onde o espírito aprisionado buscava amolecimento. Os silvos do vento, pela noite, chamamento para sair do resguardo da cabine. O peito aberto à furiosa tempestade atlântica, ao mesmo tempo que o navio parecia ser empurrado de um lado para o outro, navegando por estima. Havia algo de simbólico na luta titânica do navio contra a tempestade encolerizada. O mesmo desvario de outrora, como se as bússolas perdessem o norte e magnetismo algum curasse de recuperar a sua função.
E, porém, nem a escuridão que mergulhava o navio na boca da tempestade troava assustadora. No auge, quando já o convés era lugar inabitado mercê da força assassina do vento, e o céu parecia fundir-se com a acidentada serrania que era o mar, uma estranha acalmia adivinhada. Não estivessem os sentidos anestesiados pela ciclópica tempestade, o pavor teria tomado conta. A sinfonia de uivos dolorosos do vento, da água do mar esbarrando no casco, e depois tombando em espuma no convés, domava os temores. O exemplo era o navio. A custo, a proa arremetia contra o mar furioso, derrotava o vento que soprava de frente. O navio não se detinha – por saber que ao deter-se seria engolido pelo turbilhão que o cercava.
As horas incessantes de tempestade pareciam prolongar a noite, que entrava manhã dentro. Canibalizando-a. Para onde quer que seguisse o navio, a rota parecia prometida a tempestades que se repetiam. Os breves momentos de acalmia só anunciavam a transição para a tempestade adivinhada no horizonte. Ali seguia, embalado pelo trote do navio, emprestado ao sal que se insinuava em todos os poros. Era o sal que curava a ressaca da vida. Ácido para a blindagem que teimava em semear a insensibilidade. O sal temperava outra forma de ser. Porventura também uma capa difícil de penetrar. Mas uma crisálida aberta às dores do mundo – já não uma armadura em refúgio do mundo, como se a ilusão dos males alheios contemporizasse o apaziguamento do espírito.
As semanas, as poucas semanas de exílio prometido em alto mar, pareciam tempo repleto. Os minutos vividos em pleno, todos os seus sessenta segundos. Apetecia não dormir. Vaguear pelo navio, conhecê-lo de lés a lés, abrir todas as escotilhas para o necessário arejamento. E imaginar-se capitão, ter nas mãos as rédeas do navio, imprimir o seu trote conveniente. Um dia, no intervalo entre duas tempestades, um lenço voou até às mãos. E nada, nem ninguém, havia em redor. Nem navios, nem náufragos em lancinante apelo de socorro, nada. Um lenço, perfumado, um lenço densamente colorido. No instante em que alguns tímidos raios de sol perfuravam, a custo, o tecto de nuvens que parecia habitar em conúbio com o oceano. O tanto sol a que estava habituado, ingrediente cansativo (que as estações tinham perdido a usual ferocidade): naquele instante, um fragmento do lugar de onde se refugiara.
O corpo estremeceu, incomodado com a nostalgia do sol tão sagrado na terra que havia deixado ao embarcar. E toda a quietude ancorada ao fim daquelas semanas de exílio se esboroou com o furtivo raio de sol que espreitava no quadrante. Foi quando, ainda distante, tomou forma a linha de terra. Ao fim de todas aquelas semanas de recolhimento entregue às sortes dos mares.
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