30.1.08

Além da luz baça


Por mediação de uns pós mágicos, invisíveis porém, descobria-se a luz límpida detrás da cortina. A cortina que descerrava apenas uma luz baça, escondendo a luz clara na sua impossibilidade. Era por isso que as coisas apareciam escurecidas, tingidas pela podridão. E o desenraizamento se entranhava, deixando o espírito nas ameias distantes onde a solidão se refugiava. Todavia, se se esforçasse descobria a portinhola por onde alcançava o lado de lá da cortina da embaciada luz. Como se franqueasse o limiar do fantástico, onde a ténue diferença entre a luz habitualmente embaciada e a luz límpida que ali irradiava temperasse as diferenças que só têm lugar nos sítios que são seus antípodas.

Quando rompia a muralha que escondia a luz cristalina, tudo era diferente. As coisas na sua beleza fantástica. As pessoas irradiando uma bondade infindável. As palavras ecoavam no seu sentido literal, sem serem perfumadas por segundos sentidos. Tudo era tão claro que ninguém sabia da existência da palavra ambiguidade. As gentes pareciam abençoadas por uma estranha levitação dos corpos, os pequenos passos por gentis avenidas onde se deitava generosidade e compreensão recíproca.

Era um lugar sem as nódoas mundanas da humanidade. Sem tribunais, que as gentes estavam acostumadas a cumprir as leis não escritas a que os comportamentos obedeciam. Sem governantes, evitáveis figuras a partir de um momento (já distante no passado daquele fantasiado lugar aspergido pela luz branca) em que a revolta sublime exilou os políticos em parte incerta.

E havia cooperação, ao mesmo tempo desinteressada e egoísta, numa mortalha onde se abrigavam na sua aparente contradição. As gentes cooperavam. Sabiam que era a solução indeclinável se não queriam regressar aos tempos de outrora onde o fingimento e a dissimulação semearam a embaciada luz que desaproveitou por tanto tempo a alvura em que agora habitavam. Mas egoísta, ao mesmo tempo: cada um sabia, no seu íntimo, que a perpetuação da luz tão límpida era o palco conveniente para poderem repousar no sono tranquilo, despejado de pesadelos, que os visitava todas as noites.

A bondade era de uma força esmagadora. Tão esmagadora que a criminalidade era repudiada com uma severidade que dissuadia. A reprovação dos outros era pena suficiente para desaconselhar os pedregosos caminhos da dissidência antiética. Eram fantasmas já só arqueológicos. Havia museus pedagogicamente montados: museus vivos do que eram tribunais de antanho, fragmentos da mesquinhez que tanto tempo se amesendara no banquete autófago da humanidade. As pessoas tinham o hábito higiénico de visitar esses museus com alguma assiduidade. De cada vez que se sentiam acossadas por fantasmas malévolos, um impulso deixava-as à porta desses museus. Escassos minutos de digressão pelos tempos volvidos, a caução suficiente para retomar o lugar no altar da luz clara.

Pela rua, a beleza dos edifícios, os jardins frondosos, impecavelmente alindados, uma limpeza cuidada, uma organização tácita, sem regras detalhadas, exaustivas, pronunciando ditames legais sobre tudo e mais alguma coisa, como era hábito de outrora. Hábito renegado. Havia, decerto, uma preocupante organização, um lugar idílico, perfeito em demasia. Uma perfeição doentia, agressora até. As gentes eram ordeiras. Todos eram paradigmas de cidadania. Só havia cidadãos exemplares. A tal ponto que já nem sequer fazia sentido falar de cidadania exemplar. Um rebanho inebriado pela luz límpida, onde só tinham lugar as pessoas entregues à bondade irrecusável, povoava as dúvidas. Para onde tinham ido as excrescências que eram abundante matéria no passado encerrado? Sem excepção reconvertidas ao idílico lugar onde todos conviviam na perfeição almejada? Todavia, na perfeição inumana.

Era então que sobravam as interrogações que rompiam a condescendência geral perante a terapêutica luz límpida. Não era um requiem sentido pelos tempos idos, da malsã vida que tinha tido funeral com a revolta das gentes. Só legítimas dúvidas de que tamanha bondade, um lugar tão perfeito, pertença ao património genético humano. O genoma é incompatível. As imperfeições e toda a luz embaciada são a residência a que pertencemos. Não os sonhos idílicos. E, por idílicos, a sua impossibilidade perene. A voz que se sobrepõe é a da resignação. A que anuncia a intemporalidade da luz baça.

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